Título: O Bolsa-Lucro
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2010, Espaço aberto, p. A2

A ala do governo federal que atemoriza o País com ideias exóticas produziu mais uma que caberia bem na sua obra mais completa, o decreto do Programa Nacional de Direitos Humanos. O novo produto obrigaria as empresas à distribuição compulsória a seus trabalhadores de pelo menos 5% do seu lucro líquido.

Sobre a participação dos trabalhadores nos lucros ou resultados das empresas já existe lei federal, a 10.101, de 2000, que não define esse mínimo e remete o assunto à negociação coletiva. E vale lembrar que empresas querem lucrar. Com esse objetivo procuram estimular seus empregados a serem mais produtivos física e intelectualmente. Para tanto, por si mesmas, adotam procedimentos que alcançam parte ou a totalidade de seus trabalhadores, em geral com alguma forma de compensação econômica.

Empresa, contudo, é um termo genérico, e entre outros fatores seu lucro líquido depende da sua natureza individual, dos mercados em que atua, do capital e da mão de obra com que conta, do sindicato que representa seus trabalhadores, dos tributos que paga, dos seus processos de produção, do empenho em buscar o desenvolvimento tecnológico e as inovações e dos investimentos que realiza para essa finalidade e para expansão.

Assim, é esse contexto específico de cada uma que define a conveniência e os limites de seus programas de incentivo. Quanto a outros de caráter coletivo, tais especificidades recomendam a negociação, pois uma regra única, tal como o limite mínimo que se quer impor, pode prejudicar o desenvolvimento das empresas, desestimular o surgimento de outras, e com isso prejudicar os próprios trabalhadores.

Em várias matérias, este jornal esclareceu a origem do novo movimento atemorizante. A ideia veio do ex-ministro de Assuntos Estratégicos Roberto Mangabeira Unger e foi encampada pelos ministros Carlos Lupi, do Trabalho, e Tarso Genro, da Justiça, também conhecidos no ramo das ideias exóticas. Mais recentemente, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que sucedeu a Unger, também a subscreveu. Não vi referência à opinião da área econômica do governo, que ou se omitiu ou, em lulês, foi posta para escanteio.

Tanto pela própria ideia como pelos personagens que a impulsionam e pelos argumentos que utilizam, o foco é na distribuição. Nas palavras de Mangabeira Unger, encerrando entrevista a este jornal, "a distribuição de renda, da riqueza e do poder".

Não vi igual atenção a uma questão elementar, a da produção, que, obviamente, precede a distribuição. E a proposta tem de tudo para prejudicar a produção. Além disso, a própria distribuição também ocorreria de forma distorcida. Assim, num processo também de distribuição, mas de prejuízos, a atividade produtiva seria danificada pela criação do que equivaleria a mais um avanço dos estratosféricos encargos trabalhistas das empresas brasileiras, a onerar seus custos de produção, reduzir seus lucros e até a recomendar que seus novos investimentos, e o de empresas interessadas em vir para o Brasil, fossem realizados em outros países. É sabido que a regra internacional, em particular da nossa turma dos emergentes, é a de estimular a produção, sem prejuízo de estímulos distributivos, sejam os oferecidos pelas empresas, sejam os negociados coletivamente com seus empregados, mas sem o governo definir o placar, como esse de 5% dos lucros para um lado, logo no início do jogo.

A ideia equivale também a um imposto sobre lucros com distribuição dentro da empresa tributada, sem passar pelo governo e agravar estatísticas de carga tributária e de gastos sempre em expansão. No detalhe, quer que 2% do lucro líquido seja distribuído de forma igualitária entre os trabalhadores da empresa e 3% conforme metas, méritos, gerências e resultados. É de estranhar que alguém do governo não tenha chamado a coisa de "Bolsa-Lucro", mais um programa federal. Quanto à distribuição, poderia até agravar a concentração no que diz respeito aos rendimentos do trabalho. A razão é que a proposta beneficiaria com muito maior vigor os trabalhadores de empresas altamente capitalizadas, ou seja, nas quais é mais alta a proporção entre o estoque de capital e o número de empregados, nesse caso, em geral, também mais bem remunerados. Em face disso, relativamente a outras elas geram um volume de lucros maior, e que seria distribuído a um número menor de empregados, relativamente ao seu capital. Ou seja, uma minoria de trabalhadores ganharia muito e a maioria receberia pouco, e não sei no que isso melhoraria a distribuição dos rendimentos do trabalho.

Um caso interessante e muito conhecido, o da Petrobrás, serve de exemplo. Ela tem um imenso estoque de capital na forma de prédios, imóveis, instalações, refinarias, plataformas, dutos, navios e outros, que gera também um grande volume de lucros, relativamente à folha de salários, mesmo com os exageros desta. Nessas condições, 5% sobre os lucros corresponderiam também a um grande valor. Aliás, os funcionários dessa empresa já devem estar lambendo os beiços diante de mais um banquete em potencial. Já os trabalhadores de empresas pouco capitalizadas teriam de se contentar com migalhas, além de pagarem a própria conta dele, pois como monopólio a Petrobrás poderia transferir o novo encargo aos preços dos seus produtos.

No meio de tanta insensatez, uma manifestação lúcida, a do embaixador Pinheiro Guimarães, dizendo que a proposta não será enviada com pressa ao Congresso, ainda que isso indique o caráter eleitoreiro do surgimento dela neste momento. Disse também: "... a hora é de amadurecer o debate, acho que quanto mais debate, melhor."

Muito bem, mas nesse debate não pode faltar a equipe econômica. Que participe, então, seja para renunciar à omissão, seja para sair do escanteio.

Roberto Macedo, economista (UFMG, USP e Harvard), professor associado à Faap, é vice-presidente da Associação Comercial de São Paulo