Título: As idas e vindas do Irã
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2010, Nota e informações, p. A3

Dois dias depois da confirmação de que os Estados Unidos se preparam para montar um sistema de defesa no Golfo Pérsico, em resposta ao corrente programa iraniano de mísseis de longo alcance ? à sombra das suspeitas sobre os fins alegadamente pacíficos das suas atividades nucleares ?, o presidente Mahmoud Ahmadinejad declarou na terça-feira que para o Irã "não há problema" em aceitar o plano da ONU pelo qual o país enviaria cerca de 70% dos seus estoques de urânio levemente enriquecido para beneficiamento adicional no exterior. Não é a primeira vez que a República Islâmica manifesta boa vontade em seguida a um sinal de endurecimento do Ocidente ? numa tentativa de baixar a pressão internacional, ganhar tempo e seguir adiante no mesmo rumo.

A dissimulação, o jogo de idas e vindas, quando não a pura mentira, são conhecidas táticas iranianas. O pronunciamento de Ahmadinejad não destoa desse padrão. No começo de outubro, o Irã deu a entender que estava de acordo com um esquema da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para desatar o nó do programa de enriquecimento de urânio do país, que viola três decisões do Conselho de Segurança. Apoiado pelos governos ocidentais numa reunião em Viena, o arranjo tornaria menos rigorosa a proibição da ONU e abriria caminho para a reaproximação entre Teerã e Washington.

O Irã teria o direito de enriquecer o urânio à razão de 3%, desde que enviasse o grosso da sua produção, ou perto de 1.200 quilos, à Rússia e à França, que o devolveriam um ano depois, enriquecido a 20% ? o suficiente para alimentar um reator destinado à fabricação de isótopos radioativos para fins medicinais, mas nem de longe passível de ser usado na fabricação de uma bomba. A remessa seria feita de uma só vez. Em 29 de outubro, porém, horas depois de Ahmadinejad reiterar que "estamos prontos a cooperar" com o Ocidente, o Irã deu o dito pelo não dito. À época, fontes iranianas disseram temer que o material poderia acabar retido no exterior. Anteontem, Ahmadinejad fez pouco dos receios de seus "colegas", como afirmou.

Pudera: a sua repentina anuência ao plano da ONU contém uma condição que dificilmente será atendida, permitindo que ele culpe o Ocidente pelo impasse e exorcize a adoção de novas sanções contra o país. Trata-se da devolução do material "em quatro ou cinco meses". Em outubro, o Irã foi informado de que o enriquecimento do urânio a 20% levaria um ano inteiro. Menos tempo talvez bastasse, mas o ponto é outro: segundo os especialistas, no ritmo atual, o Irã precisaria de um ano pelo menos para recompor os seus estoques de urânio enriquecido. Com isso, o suposto projeto da bomba atômica iraniana sofreria um valioso adiamento, que também serviria para conter a tentação israelense de bombardear logo as instalações nucleares do inimigo.

A reação americana foi protocolar. "Se os comentários de Ahmadinejad refletem uma posição atualizada", disse o porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, "esperamos que o Irã a transmita à AIEA." As astúcias de Teerã já não enganam ninguém ? salvo, aparentemente, o governo brasileiro, que se imagina mediando o conflito de 30 anos entre Irã e Estados Unidos. A crer no Itamaraty, o Brasil teria se tornado um canal para o diálogo entre os dois países. Não há indícios disso, muito ao contrário. Em Washington ouve-se que a visita de Ahmadinejad a Brasília no ano passado foi considerada uma provocação premeditada do Brasil. Naturalmente, nem a Casa Branca, nem o Departamento de Estado cometerão a descortesia de passar recibo do seu desagrado com o presidente Lula.

De seu lado, o Irã sabe quanto o Planalto é suscetível à lisonja e dela se vale para enlaçá-lo. Dias atrás, em Genebra, o principal assessor de Ahmadinejad, o ex-vice-presidente Esfandiar Rahim Mashaie, disse que Brasil e Irã são "aliados estratégicos", seja lá o que isso queira dizer. "O Brasil tornou-se um país de importância central", afagou, "e o ponto central da política externa brasileira é não deixar que seja ditada pelos outros." Pelo visto, apenas pelas fantasias de grandeza de seus condutores.