Título: Oportunidade para crescer perdida
Autor: Velloso, Raul
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/02/2010, Economia, p. B2

A economia brasileira só cresce mais, sem recuos, se for possível aumentar a razão investimento/PIB, tanto no setor privado como no público. Ou seja: as taxas de juros de mercado terão de cair abaixo das atuais e o peso dos investimentos nos gastos públicos totais terá de aumentar. Outro problema crucial é a deterioração da capacidade de planejar e executar investimentos no setor público. Sem isso, mais recursos não se transformam numa maior oferta de bens e serviços.

A tarefa central de qualquer governo que assuma a partir de 2011 será o equacionamento desses problemas. Mas as taxas de juros não vêm caindo desde 2002? Os investimentos públicos não vêm subindo? Meia-verdade. Como será visto, o xis da questão está noutro lugar: é o controle dos gastos correntes do setor público (pessoal, Previdência, assistência social, etc.).

Graças à inundação de dólares que ocorreu no Brasil após 2003 e à gestão Palocci-Meirelles, caíram, de fato, as taxas de câmbio e de juros, além de aumentarem as reservas internacionais a níveis jamais imaginados, inclusive acima da dívida externa pública bruta. Isso colocou o governo numa inédita posição credora diante do exterior. Assim, a sensibilidade a choques diminuiu consideravelmente e, agora, uma depreciação cambial, resultado típico de fases pós choques, diminui a dívida pública, em vez de aumentá-la. Pasmem.

Nesse contexto, em termos reais (ou seja, deduzida a inflação), a meta da taxa de juros Selic, fixada pelo Banco Central (BC), caiu de 9,2% ao ano (a.a.), em fevereiro de 2003, para 7,4% a.a., em dezembro de 2008, diante de uma taxa média real observada ao redor de 12,6% a.a. na fase precedente (1999-2002), em meio a grandes oscilações.

Com forte crescimento da arrecadação de impostos, foi possível conciliar o início da recuperação dos investimentos públicos com gastos correntes em permanente ascensão e altos superávits fiscais. A recuperação dos investimentos públicos só não foi maior porque a inoperância dos órgãos envolvidos continuou sem solução. Mesmo assim, em novembro de 2008, logo antes da crise, a relação investimento/gastos correntes da União, que era de 2% em dezembro de 2003, havia passado para 6,2% - um resultado bastante razoável.

Só que a queda da Selic em 2003-2008 não foi imune a retrocessos, daí a taxa real anual ter caído apenas 1,8 ponto de porcentagem do início ao final desse período. Em dois momentos o BC teve de aumentar a taxa Selic não como antes, em decorrência de subidas da taxa de câmbio, mas por excesso de demanda agregada, em face do congestionamento dos crescentes gastos públicos correntes com os gastos privados, tanto de investimento como de consumo.

Esse excesso de demanda não ocorria anteriormente, porque predominava o impacto, muito mais forte, da depreciação cambial sobre a inflação e, posteriormente, sobre as taxas de juros. Os dois ciclos de subida e descida da meta da Selic, por conta disso, começaram em setembro de 2004 e abril de 2008, com duração de 11 e 9 meses, respectivamente. No primeiro caso, a taxa subiu 3,75 pontos e, no segundo, 2,5 pontos de porcentagem.

Diante da crise internacional recente, o Banco Central pôde voltar a derrubar a taxa Selic a partir de janeiro de 2009, fase que durou até o mês de julho seguinte, ao alcançar a atual marca de 8,75% ao ano (ou 4,1% reais). Nesse mesmo nível a taxa Selic vem sendo mantida desde então. Só que, agora, diante da iminência de novo congestionamento de gastos, mais uma vez espera-se um retrocesso da tendência de queda: estima-se uma subida de 2,25 pontos de porcentagem até o final de 2011, passando a taxa real para 6,2% ao ano. Isso nos leva de volta às taxas reais do início de 2008. Uma lástima.

O motivo é simples: em vez de aproveitar a crise, debitar-lhe a razão de ser de um potente programa de ajuste dos gastos correntes e promover, também, uma maior expansão dos investimentos, reduzindo o desgaste político, o governo, ao contrário, passou a aumentar os gastos correntes ainda mais, chamando inadequadamente essa estratégia de "política anticíclica", passando a reverter a tendência anterior de rápida subida da razão investimento/gasto corrente.

Depois de ter triplicado entre 2003 e 2008, essa razão, até dezembro de 2009, simplesmente parou de subir. Uma opção mais razoável teria sido conceder aumentos temporários de gastos correntes (abonos salariais, por exemplo), que poderiam ser retirados antes de o congestionamento voltar a acontecer.

Se o Banco Central não tiver autonomia para subir a Selic em 2010, a conta a ser paga por qualquer futuro governo, diante da oportunidade perdida em 2009-2010, será alta. Ou seja, será duro para o governo assistir a: 1) o novo BC iniciar nova fase indigesta de subida da Selic; e 2) ele próprio lançar, sem a ajuda de bode expiatório, um programa mais potente de ajuste dos gastos correntes, para que a economia possa crescer de forma sustentada acima de 4,5% ao ano, ainda que somente no final do primeiro mandato.

*Raul Velloso é consultor econômico