Título: Quase o paraíso
Autor: Chaves, Mauro
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2010, Espaço aberto, p. A2
Disse o presidente da Câmara dos Deputados à ministra-chefe da Casa Civil e presidenciável oficial: "Você já levou os brasileiros, administrativamente, ao paraíso e os levará, politicamente, ao paraíso." Certamente foi idêntico sentimento, em relação aos dotes demiúrgicos da ministra-candidata, que fez o presidente do Senado protagonizar o mais inebriado beija-mão já praticado por um chefe de Poder na História da República. Bem é de ver, no entanto, que ainda falta para o povo brasileiro se sentir como Adão e Eva antes de pensarem em coisas feias - seduzidos pela maçã da serpente. Talvez estejamos quase no paraíso, mas, como diz a bela canção do Roberto Carlos, quase é um detalhe importante.
Nossa educação quase evoluiu. Mas com a qualidade do ensino ministrado aos jovens o Brasil ocupa, em Matemática, o 54º lugar no ranking entre 57 países, segundo os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), divulgados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Aumentou o número de salas de aula, de matriculados, de faculdades, mas a capacidade de entendimento dos jovens brasileiros tornou-se pra lá de péssima, tanto em comparação com os países desenvolvidos quanto com os demais emergentes, com evolução cognitiva muitíssimo mais consistente.
Pelo ranking da Unesco, divulgado na edição de 2010 do Relatório de Monitoramento Global - Educação para Todos, a educação no Brasil despencou do 76º para o 88º lugar. Portanto, nesse processo de desqualificação profissional e intelectual crescente, que tem tido reflexos diretos no desemprego sistêmico dos jovens, sem dúvida vivemos, cada vez mais, numa situação de edênica ignorância. E iniciamos 2010 com 7 milhões de jovens brasileiros sem emprego por absoluta falta de qualificação.
Quase melhoramos a qualidade de vida, pelo tanto que se tem falado em preservação de ecossistemas, combate ao desmatamento, matrizes de energia limpa, sustentabilidade e coisas bonitas do gênero. No entanto, no ranking mundial do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o Brasil, alardeado como uma quase quinta potência mundial (pertinho de desbancar a tão amiga França), ainda amarga o vexaminoso 75º lugar, assim como a constrangedora 81ª colocação quanto ao índice de expectativa de vida. No campo da infraestrutura, obras essenciais quase saíram do papel, mas em razão da má qualidade dos projetos, do desrespeito às leis ambientais, do não-cumprimento de exigências do Tribunal de Contas da União, de investigações (do próprio TCU) sobre superfaturamento e outros tipos de irregularidades, entre 2004 e 2008 o governo federal não conseguiu investir mais do que os 30% do previsto no Orçamento para o setor, o que significou R$ 20 bilhões a menos do que era destinado à infraestrutura, razão pela qual 70% das rodovias federais se tornaram péssimas e, sobretudo, assassinas.
Quase se tornou a questão dos direitos humanos o assunto mais importante da sociedade brasileira, tanto se usou seu santo nome em vão (no 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos, decretado pelo presidente da República) para justificar a censura à imprensa, o desrespeito aos direitos e a desmoralização da Justiça - fazendo o poder jurisdicional do Estado depender do assembleísmo corporativo, ao exigir audiências coletivas antes de o juiz conceder liminar na reintegração de posse, em razão de esbulho. Ao mesmo tempo, continua-se fazendo a vida humana não valer porcaria nenhuma no vasto território nacional, visto que no Brasil a taxa anual de homicídios intencionais é de 25,7 mortos por cada 100 mil habitantes, enquanto esse índice nos EUA é de 5,8, na Argentina é de 5,2, na Palestina é de 4, na Índia é de 3,4, na China é de 2,3, na Inglaterra é de 2, no Chile é de 1,9, em Israel é de 1,8, na França é de 1,5, na Itália é de 1,2, na Espanha é de 1,1, na Alemanha é de 0,98 e no Japão é de 0,68.
Por tudo o que se tem falado em termos de necessidade de combate à corrupção, pelas operações espetaculares realizadas pela Polícia Federal, pelo empenho do Ministério Público e toda a energia que a Controladoria Geral da União (CGU) afirma ter despendido no refreio às bandalheiras crônicas ou agudas, quase conseguimos reduzir a corrupção no território nacional. No entanto, segundo classificação da Transparência Internacional, tiramos nota 3,7 (num total de 10), o que nos coloca em 75º lugar no ranking da corrupção no mundo - o que significa dizer que há no mundo 74 países menos corruptos do que o Brasil. E ao descobrir irregularidades na execução de grandes obras púbicas, tais como superfaturamento, sobrepreço, critérios inadequados de medição e gestão temerária - como um superfaturamento de R$ 96 milhões e um sobrepreço de R$ 121 milhões em serviços de terraplenagem da maior estatal do País -, o Tribunal de Contas da União quase cumpriu sua missão de moralizar os gastos públicos no Brasil. Mas teve sua fiscalização oficialmente desmoralizada por veto presidencial - pelo que todos os administradores públicos, daqui por diante, estão liberados a não dar a mínima para qualquer controle de obra em execução, que ameace não deixá-la pronta para cumprir, tempestivamente, sua função eleitoral.
Nos últimos tempos tem-se procurado, e quase conseguido, melhorar a autoestima dos jovens, criando-se programas especiais de acesso ao primeiro emprego e à universidade, via cotas e coisas do gênero. Mas os valores do mérito ficaram em pandarecos. E junto com apenas outros três países - Venezuela, Colômbia e Guiné - o Brasil faz a generosa proteção das inocentes crianças de 17 anos e 11 meses, ao manter a maioridade penal aos 18 anos.
Por tudo isso, quase chegamos ao paraíso. Mas ainda falta, não?
Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e pintor. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net (www.artestudiomaurochaves.wordpress.com)