Título: Recuo parcial da Argentina
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Fonte: O Estado de São Paulo, 30/01/2010, Notas e informações, p. A3
Governo e setores do empresariado brasileiro saudaram como um grande avanço na relação comercial com a Argentina a redução, pelo governo de Buenos Aires, do prazo de emissão de licenças não automáticas para importação, deixando-o nos limites estabelecidos pela Organização Mundial do Comércio (OMC). Não há, porém, o que comemorar. A questão das licenças não automáticas no comércio entre os dois países envolve duas aberrações, das quais apenas uma está sendo parcialmente resolvida.
Uma das aberrações é a continuada e deliberada inobservância, pela Argentina, dos prazos da OMC para a concessão de licenças não automáticas. O prazo máximo é de 60 dias, mas havia casos relatados por exportadores brasileiros em que a demora chegava a 240 dias. Nos últimos meses, o prazo começou a ser reduzido e, atualmente, algumas licenças estão sendo concedidas em 30 ou 35 dias, especialmente para calçados.
Mas a principal aberração é a exigência dessa licença no comércio entre dois países que, pelo menos no papel, integram uma união aduaneira, uma forma de integração ambiciosa e complexa marcada pela livre circulação de mercadorias entre seus membros. O fato de o governo da presidente Cristina Kirchner ter imposto, desde o fim de 2008, licenças não automáticas para a entrada de um número crescente de produtos brasileiros no país é uma prova do pouco-caso com que trata a questão da integração e maltrata o principal parceiro da Argentina no bloco comercial.
Por causa das restrições em vigor, os produtos brasileiros vinham perdendo posição no mercado argentino, sobretudo para os concorrentes asiáticos, o que resultava na redução da produção e do emprego no Brasil. Ainda assim, motivado por inexplicáveis critérios políticos regionais, o governo Lula vinha agindo com condescendência em relação ao protecionismo aberto adotado pelo governo Kirchner.
Só em outubro último o governo brasileiro começou a responder, na prática, às restrições impostas pelos argentinos, adotando a mesma medida com relação a diversos produtos argentinos de grande importância no comércio bilateral. A questão foi um dos temas principais da longa reunião que Lula e Cristina Kirchner tiveram em novembro do ano passado, na qual o máximo que conseguiram acertar foi o compromisso de cumprir as normas da OMC.
Mais de 100 produtos brasileiros estão sujeitos a licença não automática para entrar no mercado argentino. No caso dos calçados, como reconhece a Abicalçados, a associação das empresas do setor, a situação melhorou depois que o Brasil respondeu na prática às restrições argentinas.
O calçado brasileiro vinha perdendo espaço no mercado argentino para o produto asiático. No ano passado, até outubro, as exportações brasileiras somavam 8 milhões de pares. Nos últimos três meses do ano, porém, com o alívio das restrições, as exportações brasileiras foram de 4,9 milhões de pares, quase 40% do total exportado em todo o ano.
Do lado argentino, obviamente, o empresariado gostou das restrições impostas aos produtos brasileiros. Na quinta-feira, representantes de 22 setores empresariais se reuniram com a ministra de Indústria e Turismo, Débora Giorgi, para elogiar sua gestão, especialmente sua iniciativa de utilizar licenças não automáticas. Os empresários argentinos querem que mais produtos brasileiros sejam incluídos na lista, e a ministra tem procurado agradá-los.
É com essa disposição que ela participará, com outros membros do governo argentino, da reunião ministerial que se realizará nos próximos dias 4 e 5, em Buenos Aires, e que foi convocada para tentar melhorar as relações comerciais entre os dois países.
O secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ivan Ramalho, reconhece que, "idealmente, não deveríamos nem sequer ter licenças no comércio bilateral". Mas, pelo histórico do relacionamento comercial entre Brasil e Argentina, admite que a questão terá de continuar sendo negociada com o governo Kirchner. O que os episódios recentes mostram, como observou ao jornal Valor o diretor executivo da Abicalçados, Heitor Klein, é que "os argentinos só reagem quando nós endurecemos".