Título: Presidente do BC argentino rejeita demissão e abre crise no governo
Autor: Palacios, Ariel
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/01/2010, Internacional, p. A10

Redrado, que só pode ser destituído pelo Congresso, recusa pedido de Cristina Kirchner para que renuncie

A presidente argentina, Cristina Kirchner, exigiu ontem a renúncia do presidente do Banco Central, Martín Redrado, no posto desde 2004. Simultaneamente, o governo anunciou que Cristina havia convidado para esse posto o economista Mario Blejer, ex-presidente do BC argentino e ex-diretor do Banco da Inglaterra. No entanto, para surpresa do governo, Redrado anunciou que não renunciará, já que seu mandato termina apenas em 23 de setembro, disseram fontes do BC. Pela Constituição argentina, cabe ao Senado, onde a oposição tem maioria, a tarefa de confirmar e destituir o presidente do BC. O governo ameaça ir à Justiça caso Redrado não abandone o cargo.

A inesperada decisão de Redrado - conhecido por evitar confrontos - de resistir à pressão implica um revés para Cristina e seu marido, ex-presidente e atual deputado Néstor Kirchner. Os líderes dos partidos da oposição ficaram do lado de Redrado.

Segundo o cientista social Sergio Berensztein, diretor da consultoria Poliarquia, as pressões do governo sobre Redrado "aprofundam a insegurança jurídica" e podem provocar "consequências institucionais negativas". A oposição acusou os Kirchners de "autoritarismo" e de praticar o "hiper-presidencialismo". No meio da confusão criada por esta nova frente de conflitos, Blejer - que estava esquiando na França - recuou e anunciou que, por enquanto, não aceitará o convite. "Não aceitei nem recusei", disse.

Reservas

A razão do pedido de renúncia de Cristina a Redrado foi a contrariedade que ele demonstrou na semana passada à ideia do governo de usar reservas do BC para a criação do "Fundo Bicentenário", com o qual o governo pretende pagar US$ 6,5 bilhões de dívidas que vencem neste ano. Isso implicaria uma redução das reservas do BC dos atuais 47,98 bilhões para US$ 41,48 bilhões. Mas a gota d""água ocorreu ontem de manhã, quando surgiu a notícia de que Redrado se reuniria com dois importantes líderes da oposição, o senador Gerardo Morales e o deputado Ernesto Sanz, da União Cívica Radical.

Diante da negativa do presidente em deixar o cargo, mais de 300 funcionários do BC realizaram uma manifestação de respaldo a Redrado na frente do edifício da entidade. Além deles, Redrado contaria com o apoio da opinião pública, pois uma enquete online do jornal La Nación indicou que 94,34% dos internautas não querem que Redrado renuncie. Outra pesquisa, do Clarín, indicou que 84,5% dos internautas concordam com a decisão de Redrado de não renunciar.

O ministro da Economia, Amado Boudou, afirmou que a única pessoa que define a política econômica é Cristina. "Existe muita politicagem barata para obstruir nossa gestão. Não coloque travas na roda", disse, em sinal de alerta a Redrado.

O presidenciável prefeito portenho, Maurício Macri, destacou que o pivô desta crise "é a intenção dos Kirchners de usar reservas para esconder o déficit fiscal". Desta forma, Cristina sofre a segunda rebelião de peso em suas fileiras em dois anos de governo. A primeira foi a do vice-presidente Julio Cobos, que se recusou a votar a favor do "tarifaço agrário" do governo no Senado. Com seu voto de Minerva (o vice, na Argentina, é o presidente da Câmara Alta), derrubou o impopular projeto.

Aliados do governo exigiram a renúncia de Cobos. Este, no entanto, recusou-se a deixar o cargo. Cobos voltou à oposição e atualmente - ainda vice-presidente - é o principal presidenciável para as eleições de 2011.

A segunda rebelião é a de Redrado, economista de confiança do casal Kirchner, que em diversas ocasiões o consideraram para a pasta da Economia. Aos dois golpes, vindos de ex-aliados, acrescenta-se a perda de poder do governo, que desde a posse do novo Parlamento, em dezembro, não tem mais maioria na Câmara e no Senado.

De quebra, o governo também sofreu recentes reveses em sua guerra contra o Grupo Clarín, a maior holding multimídia do país. Ao longo das últimas quatro semanas vários juízes anularam artigos da polêmica Lei de Mídia, com a qual o governo pretendia reduzir o poder de atuação das empresas de comunicação. Além disso, nas últimas duas semanas foram anunciados oficialmente o lançamento de diversas candidaturas presidenciais da oposição.

O rebelde

Redrado apoiou medidas dos Kirchners Desde que assumiu o cargo, Martin Redrado concordou com a maioria das medidas econômicas do casal Kirchner. Em 2005, apoiou a polêmica reestruturação dos títulos da dívida pública com os credores privados que estavam em estado de calote desde dezembro de 2001. Formado em Harvard, foi secretário de Comércio e Relações Econômicas antes de assumir o BC. Seu costume de evitar confrontos e atender os pedidos do governo contrastam com a decisão de desafiar Cristina.

O escolhido

Blejer liderou o BC na crise argentina

Mario Blejer ocupou a presidência do Banco Central no governo de Eduardo Duhalde (2001-2003), durante a pior crise das últimas décadas. Renunciou por discordar da política do Ministério da Economia na época. Ex-diretor do FMI, onde trabalhou por duas décadas, hoje é assessor informal do ministro da Economia, Amado Boudou. Blejer, que tem contatos com a oposição, chegou a aceitar o convite de Cristina Kirchner, mas desistiu, já que Redrado continuava no posto.