Título: Governo cede, barreiras ficam
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Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2010, Notas e informações, p. A3

O governo argentino vai manter o protecionismo comercial contra o Brasil, embora não tenha nenhum argumento razoável para insistir nessa política. Barreiras continuarão dificultando o ingresso de produtos brasileiros enquanto as autoridades argentinas julgarem conveniente. Parte do mercado será conquistada por outros produtores, principalmente chineses, como já tem ocorrido. Dois dias de reunião ministerial ? três ministros de cada lado ? serviram apenas para a reafirmação da política imposta pela Casa Rosada há vários anos e apenas ampliada pela presidente Cristina Kirchner.

Como sempre, a delegação brasileira concordou, como se essa orientação fosse boa para o Mercosul e atendesse a objetivos estratégicos do Brasil. Lamentavelmente, só o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e uns poucos assessores parecem conhecer esses objetivos e entender essa estratégia. Os chineses também não devem entendê-la, mas certamente a aprovam e esperam sua manutenção por muito tempo.

O resultado do encontro foi o previsto. Fontes do governo argentino anteciparam à imprensa a intenção de nada ceder e de conservar as barreiras contra produtos brasileiros ainda por longo tempo. As autoridades brasileiras devem ter ido a Buenos Aires apenas para cumprir tabela, porque não podiam esperar comportamento diferente de seus pares argentinos.

Mas desempenharam seu papel em grande estilo, como se participassem de um grande evento. Representaram o Brasil o chanceler Celso Amorim, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Miguel Jorge, e o ministro da Fazenda, Guido Mantega. Pela Argentina participaram o chanceler Jorge Taiana, o ministro da Economia, Amado Boudou, e a ministra da Produção, Débora Giorgi.

A encenação incluiu uma reunião de monitoramento do comércio Brasil-Argentina, com participação de pessoal de segundo escalão. O secretário executivo do Ministério do Desenvolvimento, Ivan Ramalho, ainda tentou exibir algum otimismo depois do encontro. Segundo ele, é importante eliminar as licenças não automáticas de importação, "principalmente" neste momento de retomada do comércio bilateral.

Mas o governo argentino não tem a mínima intenção de eliminar essas licenças a curto prazo. Segundo o ministro Miguel Jorge, em breve os dois governos discutirão "uma flexibilização possível" e uma "redução de prazos" para a concessão das licenças. Disse isso como se as barreiras argentinas fossem perfeitamente razoáveis e normais no comércio de dois países-membros de uma mesma união aduaneira ? uma forma de integração formalmente superior a uma zona de livre comércio.

A passividade brasileira diante da imposição argentina ficou ainda mais patente no detalhamento do assunto: "Não definimos os setores que serão objeto de flexibilidades. Estudaremos caso por caso. Será um processo de conversas e negociações", disse o ministro. Nada se resolveu, portanto, além da continuação, em algum momento, dessas negociações para a superação de um quadro incompatível com os compromissos assumidos pelos sócios do Mercosul.

Na prática, tudo se passa como se os governos de Brasil e Argentina estivessem dando os primeiros passos para um acordo comercial, sem conhecer ainda a lista de produtos envolvidos e as condições da liberalização.

Não chega a surpreender o fato de as autoridades brasileiras não ficarem ruborizadas ao relatar resultados tão vexaminosos. Afinal, esse tem sido o comportamento-padrão dos ministros brasileiros, quando se trata de imposições de certos parceiros latino-americanos.

Enquanto a situação se mantém, mais de 400 produtos brasileiros ficam sujeitos a licenças não automáticas e a outros tipos de barreiras impostas pelo maior parceiro comercial do Brasil na América do Sul. É uma política ruim para a economia brasileira e tremendamente injusta para quem investiu e ganhou legítimo poder de competição, além de ser letal para o Mercosul.

O grotesco se completa com a declaração do chanceler Celso Amorim. Segundo ele, os dois lados estão encontrando "soluções criativas" para os problemas comerciais e estão "olhando mais para o futuro do que para o passado". Que futuro pode ter um bloco econômico como o Mercosul?