Título: Em guerra retórica, Vannuchi acumula pendências em sua pasta
Autor: Nossa, Leonencio
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/01/2010, Nacional, p. A10
No cargo há 4 anos, ele não consegue dar desfecho ao processo de identificação de restos mortais do Araguaia
Centro da polêmica envolvendo o Programa Nacional de Direitos Humanos, o ministro Paulo Vannuchi acumula pendências para resolver em sua área em relação à época do regime militar (1964-1985) e dos dias de hoje. Em permanente guerra de retórica com as Forças Armadas, ele chegou a ameaçar pedir demissão do ministério, contrariado com o bombardeio que o programa recebeu de setores da sociedade civil e até do governo, por propor mudanças tão amplas como a liberação do aborto e a taxação sobre grandes fortunas. Foi mantido no cargo pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva - mas o deixou irritado com confusão criada, que desgastou o governo.
Ao mesmo tempo, desde que chegou ao governo, há quatro anos, Paulo Vannuchi não consegue dar desfecho ao processo de identificação de dez conjuntos de fragmentos ósseos retirados do Araguaia, onde o Exército executou guerrilheiros nos anos 1970. Nove deles estão nos armários de sua secretaria e um no IML de São Paulo à espera de reconhecimento para ser entregues às famílias ou devolvidos para os cemitérios da região - embora o ministro seja incisivo na defesa do direito dos familiares de enterrar seus mortos.
Em dezembro passado, o governo até causou constrangimento aos parentes de mortos no Araguaia ao pedir o arquivamento da ação deles na Organização dos Estados Americanos (OEA) que cobra esclarecimentos sobre a guerrilha no Araguaia.
A coleção de restos mortais sob guarda do governo inclui fragmento de um guerrilheiro do Araguaia que, décadas antes, foi vítima do Estado Novo. O esqueleto do marinheiro Francisco Manoel Chaves, colega do escritor Graciliano Ramos nas celas da Ilha Grande, está nas gavetas do IML, de São Paulo. Chaves foi para o Araguaia com cerca de 60 anos, morrendo num confronto com o Exército em 1972.
Esse caso é um dos mais fáceis para resolver, avalia a professora da UFRJ Victoria Grabois, filha de Maurício Grabois, comandante das Forças Guerrilheiras do Araguaia, morto no combate do Natal de 1973.
Nos armários de Brasília estão um conjunto de ossos retirados do cemitério de Xambioá em 2001 apontado pelos moradores como de Paulo Mendes Rodrigues, um chefe de destacamento da guerrilha. Há também o esqueleto de um homem sem os ossos das mãos e de uma mulher, com os braços para frente, como tivesse sido amarrada.
Victoria Grabois diz que o governo brasileiro trata a questão dos desaparecidos com "doses homeopáticas". Faz questão de ressaltar que sua crítica é ao "governo como um todo", sem personalizar.
"Se ele (governo) tivesse coragem, seguiria em frente", diz. "Em 2006, colheram material das famílias, fizeram um banco de DNA. Se tivesse interesse político, já tinha feito exame desses ossos." E avalia: "A secretaria faz muito para outros segmentos, mas em relação aos mortos e desaparecidos tem muito a fazer."
O ministro também é cobrado por suas posições sobre episódios atuais. Uma análise nos nove principais discursos feitos por Vannuchi em sua gestão, divulgados no site da secretaria, mostra que ele não tem hábito de falar das execuções de civis pelas polícias nem sobre tortura nos presídios e delegacias. Não há referências a 1.308 pessoas mortas pelos policiais militares de São Paulo e do Rio no ano passado.
Nesses discursos, Vannuchi só citou como caso específico da falha do sistema de segurança a prisão da jovem Carolina Pivetta por grafitar na Bienal de São Paulo.
Irmão José de Jesus Filho, da direção nacional da Pastoral Carcerária, lembra que a secretaria avançou no tema ao criar o Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos e a Coordenação de Combate à Tortura. Ele considera como aspecto negativo a demora na implantação do grupo para controlar e monitorar violações no sistema prisional, previsto no protocolo de combate à tortura, um aditivo da Convenção da ONU sobre a tortura. Na avaliação do ativista, o mecanismo é a chave para resolver o problema. "Embora o ministro tenha se esforçado, o governo como um todo não tomou as medidas necessárias."
Na noite da última quinta-feira, após mais um dia de visita a presídios paulistas, irmão José disse ao Estado que a secretaria não tem a força de outras pastas. "A tortura neste país é diária", observou. "Estou cansado de cuidar de tanta tortura."
FRASES
Victoria Grabois Filha de guerrilheiro "Em 2006, colheram material das famílias, fizeram um banco de DNA. Se tivesse interesse político já tinha feito exame desses ossos"
José de Jesus Filho Pastoral Carcerária "Embora o ministro tenha se esforçado, o governo como um todo não tomou as medidas necessárias"
"A tortura neste país é diária. Estou cansado de cuidar de tanta tortura"