Título: BC independente tem base de legitimidade
Autor: Cortez, Rafael
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2010, Economia, p. B2
*
A tensão entre o banco central (BC) argentino e a presidente Cristina Kirchner teve forte repercussão entre os formadores de opinião no Brasil. A disputa em torno da legalidade do uso de reservas para financiar o Tesouro argentino trouxe à tona o debate em torno da legitimidade do banco central nas democracias. A resposta a essa pergunta é fundamental para o posicionamento acerca da independência operacional e de mandatos dos membros do BC.
A despeito do seu caráter não eletivo, um BC independente não é desprovido de legitimidade. A autoridade monetária possui outras bases de legitimidade que não o voto, mas ainda assim exerce papel fundamental para o bom desempenho das democracias.
As democracias liberais se caracterizam por regimes em que a autoridade governante extrai sua legitimidade direto da delegação da soberania popular por meio do voto. Trata-se de um mecanismo de seleção das lideranças. Nesse regime, as decisões são legítimas, independentemente do seu conteúdo, por decorrerem de procedimentos que respeitem os poderes constituídos.
Do ponto de vista da política, o principal argumento contrário à independência do banco central diz respeito à sua não legitimidade popular, que o impediria de tomar decisões que, a rigor, estariam nas mãos do Estado e, portanto, deveriam ser levadas a cabo por autoridade constituída pelo voto direto dos eleitores. Nesse sentido, seria desejável que os diferentes governantes tivessem toda a liberdade para fazer alterações na política econômica e na equipe que será responsável pela gestão do Estado.
Ainda que não tenha legitimidade direta do voto, um banco central independente possui bases de legitimidade nas democracias, decorrentes da delegação de autoridade de um poder do Estado com base em sua capacidade técnica. Assim, a maioria governante delega parcela do seu poder na definição da política monetária para proteger um bem público, ou seja, a estabilidade monetária. O princípio substantivo por trás desse argumento é a corrosão da renda da sociedade e, portanto, do bem-estar social decorrente de períodos inflacionários. Assim, trata-se de atribuir à preservação da renda status institucional semelhante ao dos direitos fundamentais dos indivíduos. Um mecanismo de preservação da cidadania.
Sob essa perspectiva, a questão central seria como garantir que os executores de política monetária tenham um comportamento pautado pelo exercício das diretrizes de "políticas" estabelecidas pelos governos. Trata-se de um debate de como garantir mecanismos efetivos de "accountability". O desenho institucional encontrado que garanta preservação da inflação e prestação de contas é a autonomia dos mandatos do presidente e dos diretores do banco central aliada ao controle do Congresso de possíveis ações discricionárias da parte da maioria governamental. A preservação da autonomia do BC passa, paradoxalmente, pelo fortalecimento de uma instituição política, qual seja, o Poder Legislativo. Um Poder Legislativo autônomo do Executivo fortalece a autonomia da autoridade monetária ao controlar a vontade do presidente.
O limite da vontade de uma maioria momentânea é legítimo em determinados casos. A própria Constituição brasileira prevê cláusulas pétreas que não são passíveis de modificações, independentemente da vontade da maioria. Outro exemplo é o Poder Judiciário, um poder contramajoritário, mas que possui sua legitimidade como guardião dos direitos individuais das minorias.
Regimes democráticos são caracterizados por uma cadeia de delegação de poder político cujo último elo é sempre o eleitor. O desafio institucional é evitar "perda de agência" pelas instituições representativas. Trata-se de criar mecanismos de punição para desvios das funções daqueles que irão executar políticas definidas pela autoridade política.
O grau de autonomia de um banco central é uma escolha de cada país. Não se pode argumentar, todavia, que não há legitimidade política em bancos centrais independentes. A história econômica recente reforça a importância da autoridade monetária no combate ao processo inflacionário. Há estudos (Democracy and Development, Przeworski et alli) que demonstram que renda per capita elevada está positivamente relacionada com a preservação das instituições políticas. Estabilidade monetária não é o fim último de nenhuma democracia, mas a preservação da renda é, sem dúvida, uma variável que contribui para a manutenção das regras do jogo.
*Rafael Cortez, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, é analista da Tendências Consultoria