Título: O Brasil e os EUA no Haiti
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Fonte: O Estado de São Paulo, 19/01/2010, Notas & Informações, p. A3

As primeiras reações de autoridades brasileiras à entrada em cena dos Estados Unidos nas operações de ajuda humanitária ao Haiti foram nada menos que constrangedoras. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, de volta dos escombros de Porto Príncipe, por onde circulou em uniforme militar, não pensou duas vezes antes de condenar o "assistencialismo unilateral" de Washington, como se referiu ao fato de os americanos terem assumido o controle do aeroporto da capital. A tomar pelo valor de face as suas palavras, os EUA teriam desalojado os haitianos do local por iniciativa própria como primeiro passo para monopolizar a assistência ao país e criar as condições logísticas para o exercício de sua hegemonia no processo de reconstrução.

Na realidade, o controle do aeroporto mudou de mãos a pedido do presidente haitiano, René Préval, aflito com a falta de preparo das equipes locais e a insuficiência de equipamentos para dar conta do aumento exponencial de pousos e decolagens que se seguiu ao terremoto. Isso interferiu nos voos da FAB transportando víveres, medicamentos e profissionais de saúde. "Há aviões demais e nós quisemos apenas evitar acidentes", disse ao Estado o assessor de Segurança Nacional dos EUA, Denin McDonough. O contratempo deixou agastado o chanceler Celso Amorim, que se apressou a protestar à secretária de Estado Hillary Clinton. Ele considerou "até certo ponto natural" o ocorrido. O que o preocupa, segundo disse, é o Brasil ser tratado "com a prioridade adequada", numa alusão ao fato de o País comandar as tropas da ONU no Haiti.

Ora, a prioridade absoluta para os haitianos é receber assistência, e com toda a urgência possível, parta de quem partir. A pirraça brasileira ignorou a realidade elementar, percebida desde logo pelo presidente Préval, de que nenhum outro país tem meios comparáveis aos dos EUA para socorrer o Haiti. E o organismo mais preparado para prestar socorro são as suas Forças Armadas. Além disso, a catástrofe obriga a repensar o papel da ONU na "estabilização" política do país. O mandato da Minustah nesse sentido terá de ser adaptado às novas e terríveis circunstâncias, incomparavelmente mais difíceis do que aquelas que levaram o Conselho de Segurança a determinar a sua criação, em abril de 2004, depois do levante que derrubou o então presidente Jean-Bertrand Aristide. Hoje, enquanto a horda de desesperados percorre as ruas de Porto Príncipe, até o presidente Préval é um sem-teto.

Mesmo que a comunidade internacional fosse uma assembleia de querubins, concentrados unicamente em fazer o bem para o Haiti, a combinação da ajuda humanitária de que o país necessita desesperadamente com o estabelecimento de padrões mínimos e não menos essenciais de ordem e segurança na capital requereria por si só uma engenharia de extravagante complexidade e de custo exorbitante. Na vida real, porém, esse esforço passa ainda pelo cálculo dos governantes e por uma equação de poder que seria pueril fingir que não existem. Para o presidente Barack Obama, para citar o primeiro dos exemplos, o resgate do Haiti é ao mesmo tempo um ato de humanismo e uma oportunidade política para mostrar ao mundo do que os EUA são capazes quando se trata de fazer o oposto da destruição. A convocação dos presidentes Bill Clinton e George Bush para a empreitada dá a ideia do que o Haiti representa para a Casa Branca de Obama. Interesses de afirmação nacional de outros países são igualmente legítimos. A questão é conciliá-los, de um lado, com a capacidade de ajuda de cada qual e, de outro, com o papel das instituições multilaterais.

Uma teleconferência organizada domingo pelo Canadá, com representantes de uma dezena de países (entre eles Amorim e Hillary), da ONU e da OEA, foi a primeira iniciativa de dividir o trabalho de administrar o inferno haitiano. Da reunião resultou o aparente consenso de que a ONU, basicamente por intermédio do Brasil, se ocupará da segurança e os EUA, da ajuda humanitária. Na prática, evidentemente, uma coisa e outra se entrelaçam, o que exigirá vontade efetiva de cooperar e aptidão para fazê-lo nessa que é uma autêntica situação-limite. Se der certo, o relacionamento bilateral Brasília-Washington terá superado uma das provas mais severas em muitos anos.