Título: Farsa grotesca
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/01/2010, Notas & Informações, p. A3

Por mais que os brasileiros não se surpreendam mais com cenas de explícita desfaçatez protagonizadas por políticos e gestores da coisa pública, já que estas se repetem à exaustão, sempre é possível sentir-se um novo espanto quando a sem-vergonhice pública ultrapassa todas as medidas. Este é, precisamente, o caso da conexão espúria entre o Executivo e o Legislativo do Distrito Federal. No bojo de um dos escândalos mais espalhafatosos já vistos pelo País ? amplamente exibido nos telejornais, com dinheiro vivo recebido por um governador de Estado, ou colocado nas meias de um presidente de Casa Legislativa, ou na cueca de outros comparsas, afora as rezas piedosas exibidas pela quadrilha, em agradecimento aos céus pela propina recebida ? montou-se uma farsa grotesca para a "apuração" da maracutaia.

E as pessoas já não podem manifestar seu repúdio aos abusos. Como se viu na segunda-feira, a polícia, chamada pelo deputado Leonardo Prudente (ex-DEM) ? o mesmo flagrado enquanto enchia os bolsos e as meias de dinheiro ?, dissolve com inusitada truculência qualquer tentativa de manifestação, exceto, é claro, as da claque reunida e transportada em ônibus fretados pelos partidários do governador José Roberto Arruda.

Se havia 400 pessoas protestando contra a indecência vertiginosa, mostrada pelas cenas do "mensalão do DEM", Arruda colocou para enfrentá-las uma tropa de 600 barulhentos "defensores", fechando depois as portas da Câmara Distrital.

Lá dentro, jogando com cartas escancaradamente marcadas, a base aliada do governo Arruda conseguiu impor sua maioria às comissões que, hipoteticamente, deverão investigar o propinoduto do Planalto Central. Para a presidência da CPI da Corrupção (também chamada CPI da Propina), foi eleito o deputado distrital Alírio Neto (PPS), ex-secretário do governo Arruda e braço direito do governador na Casa. Para relator foi escolhido Raimundo Ribeiro (PSDB), outro ex-secretário de Arruda. Nessa comissão há um único oposicionista, o deputado distrital Paulo Tadeu (PT). A presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que deverá examinar os pedidos de impeachment do governador, ficou com outro aliado de Arruda, o deputado distrital Geraldo Naves (DEM). A Comissão Especial, criada para analisar os processos de impedimento movidos contra o governador, não se reuniu.

É que os aliados de Arruda pretendem adotar a estratégia de fazer com que os pedidos de afastamento "morram" na própria CCJ. Como a CPI da Propina tem duração prevista de seis meses, ficou acertado que os pedidos de impeachment só serão considerados após esse prazo. Sendo assim, praticamente se garante que o governador José Roberto Arruda terminará tranquilamente seu mandato, sem precisar se defender em processo de impedimento.

O "mensalão do DEM" parece, de fato, inaugurar nova fase na história das bandalheiras, na medida em que o desprezo pela opinião púbica, a falta de disfarces, a certeza da impunidade e o uso de quaisquer meios para resistir a cobranças populares, no que concerne à ética na política, revelam políticos que se creem imunes a qualquer tipo de sanção. Em outras palavras, aqueles políticos estão pouco se lixando para a opinião pública e não temem a Justiça.

E é assim que começamos este ano eleitoral. É bem verdade que essa "garantia" de impunidade, que sentem os políticos brasilienses, não foi criada por José Roberto Arruda ? vem de outros mensalões. É verdade que o Ministério Público tentou ? e ainda não conseguiu, por insuficiência na apresentação de documentação ? que a Justiça impedisse que deputados distritais suspeitos de cumplicidade com o governador participem do julgamento de seu impeachment.

Também é verdade que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já autorizou a quebra de sigilo fiscal e bancário de Arruda e outros 15 envolvidos pela Operação Caixa de Pandora, deflagrada pela Polícia Federal em 27 de novembro. Mas, lembrando dos escândalos recentes ocorridos no Congresso Nacional ? ali bem perto da Câmara Distrital ?, só resta torcer para que, como dizem os psicólogos, a esperança vença a experiência.