Título: Direitos humanos: vamos com calma
Autor: Scherer, Dom Odilo P.
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2010, Espaço aberto, p. A2

Os "direitos humanos" estão sendo motivo de controvérsias, ultimamente, e não é sem razão: algumas questões bem controvertidas estão querendo se fazer passar por "direitos humanos". Embora não seja recente, esse conceito emergiu e se afirmou no século 20; a humanidade tomou consciência sempre mais clara sobre a dignidade humana, sobretudo diante das aberrantes atrocidades cometidas contra pessoas e inteiros povos por regimes totalitários. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em dezembro de 1948, representou um marco histórico na civilização. João Paulo II, no seu discurso às Nações Unidas em outubro de 1979, definiu-a como "pedra miliar no caminho do progresso moral da humanidade".

A Igreja Católica reconheceu no movimento que levou a sociedade a identificar e proclamar os direitos humanos um dos esforços mais relevantes da humanidade para responder, de modo eficaz, às exigências decorrentes da dignidade humana (cf. Dignitatis Humanae 1). A Declaração é um instrumento extraordinário para defender e promover universalmente a dignidade da pessoa. De fato, os direitos não são separáveis da dignidade da pessoa.

Infelizmente, porém, o respeito aos direitos humanos ainda não é um fato geral e consumado; sua violação, mesmo grave, continua sendo constatada diariamente; não é unânime a sua interpretação e, com frequência, o teor ideológico de certos discursos leva a olhar com desconfiança a própria questão dos direitos, com o risco de relegá-los ao descrédito. Hoje há também certa pressão de grupos para fazer valer, como direito humano universal, algo que é subjetivo e posição ideológica de parte. Não é aceitável afirmar os próprios interesses, ou supostos direitos, passando por cima da dignidade e dos direitos fundamentais de outros.

Penso que seja necessário retomar uma reflexão serena e bem fundamentada sobre a questão, para que os direitos humanos não sejam desacreditados; isso abriria o caminho para um retrocesso preocupante da civilização humana, com o risco de fazê-la embrenhar-se novamente na barbárie. Alguns sinais já estão por aí, como o aumento da violência e a indiferença diante dela, o exploração da prostituição como mercado rentável, até com a pretensão de fazê-la reconhecer como profissão, uma entre as tantas, enquanto é pura escravidão degradante; ou as propostas de aborto, eutanásia e eugenia, por vezes envoltas em discursos pseudo-humanitários, como fizeram regimes autoritários do passado, hoje claramente identificados como bárbaros. É por aí que queremos enveredar?

Qual é o fundamento dos direitos humanos? O consenso da sociedade? A posse de riquezas ou de poder? O poder do grupo reinante ou o poder conferido pela posse de riquezas não é base segura nem critério aceitável para a definição de direitos humanos fundamentais; o poder, isso sim, deve estar a serviço do respeito aos legítimos direitos. Certamente, o consenso da sociedade é importante, mas, por si só, não é base segura para definir direitos humanos. Estes, mais que concordados mediante um pacto, devem ser constatados e reconhecidos, como tais, pela sã razão e pelo bom senso, mesmo sem receber a aprovação das maiorias. Muito simples de exemplificar: o direito a existir e a viver não depende da aprovação da maioria; ninguém de nós aceitaria que fosse submetido a uma votação o nosso direito a viver... Da mesma forma, o direito a respirar, a se alimentar, de ir e vir, à liberdade de pensamento e de opinião, de aderir ou não a uma religião. Esses direitos são primários, não são outorgados por outrem, nem pelo conjunto da sociedade; pertencem à pessoa, por ser pessoa; são inalienáveis e precisam ser, apenas, reconhecidos. A competência e o dever de fazê-los reconhecer e respeitar é da autoridade constituída, mas também é tarefa de toda a sociedade.

Já ensinava o papa João XXIII, na encíclica Pacem in Terris, que a fonte última dos direitos humanos não é a vontade dos homens, nem o poder do Estado ou dos poderes públicos, mas a natureza do próprio ser humano e, enfim, Deus, seu Criador. Mais recentemente, Bento XVI, na encíclica Caritas in Veritate, lembrou que o fundamento dos direitos humanos não está apenas nas deliberações de uma assembleia de cidadãos; neste caso, poderiam ser alterados a qualquer momento, dependendo das convicções e da ideologia de quem está com a mão no poder; assim, os direitos careceriam de referência objetiva e universal, ficando diluído e sem eficácia na consciência dos cidadãos o dever de os reconhecer e respeitar.

A raiz dos direitos humanos precisa ser buscada na dignidade fundamental e originária de cada ser humano, membro da família humana; tal dignidade, apreendida antes de tudo pela sã razão, é inerente a cada pessoa, igual para todos. No horizonte do cristianismo, esse fundamento natural dos direitos é destacado ainda mais com a afirmação de fé de que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus e que o Filho de Deus uniu a si a nossa humanidade mediante seu nascimento entre nós; isso deu ao ser humano uma dignidade incomparável; ele também é chamado a viver como familiar e íntimo de Deus. E isso não vale apenas para alguns, mas para todos, mesmo para aqueles que parecem ter perdido ou desmerecido a sua humana dignidade.

Universalidade e indivisibilidade são dois traços distintivos e inseparáveis dos direitos humanos, que também devem corresponder a uma exigência inalienável da dignidade humana. Portanto, direitos humanos não podem ser assimiláveis a bandeiras de luta ou interesses de grupos particulares.

Dom Odilo P. Scherer é cardeal-arcebispo de São Paulo