Título: Havia risco de outras práticas delituosas
Autor: Macedo, Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2010, Nacional, p. A6

Para o ministro que manteve Arruda preso, as minúcias do caso ""são gritantes e causam perplexidade""

Marco Aurélio Mello, há 31 anos na magistratura, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) desde 1990, decidiu na madrugada de ontem manter José Roberto Arruda na prisão. Quando terminou a leitura dos autos e conheceu todos os argumentos do procurador-geral da República, Roberto Gurgel, já noite alta, o ministro estava convencido da necessidade da custódia preventiva do governador.

Depois de um "bom sono, tranquilo", Marco Aurélio tomou café da manhã e leu sua decisão para um gravador. Eram 10h25 quando a fita seguiu de sua residência para o gabinete na corte máxima do Judiciário.

A assessoria de Marco Aurélio colocou no papel suas palavras. O texto foi encaminhado às suas mãos. O ministro fez "algumas alteraçõezinhas", como diz, e assinou a decisão esperada por todo o País - estava rejeitado liminarmente o habeas corpus para Arruda.

Por que o sr. manteve o governador na prisão?

Pela preservação da ordem pública, inclusive. O artigo 312 do Código de Processo Penal impõe prisão para preservar a ordem pública e a instrução criminal. Havia o risco de se ter outras práticas delituosas e condenáveis. A prisão tem a finalidade de frear essas práticas e restabelecer a normalidade. Uma coisa é imaginar-se que alguém, por ter prestígio, poderá interferir. Outra coisa é ter-se a demonstração da interferência, como ocorreu.

Impressionado com o grau de envolvimento do governador?

As minúcias são gritantes e causam perplexidade. Há o depoimento do próprio interlocutor que levou o dinheiro ao jornalista (Edson Sombra), muito explícito quanto à origem dos fatos. A origem esteve no Palácio (do Buriti). E o beneficiário da tramoia seria único.

O governador fica preso por causa do inquérito do mensalão do DEM ou pela tentativa de suborno?

Pelo flagrante do suborno. É triste, é triste.

O que mais o convenceu da necessidade de manter o governador na prisão?

A filmagem, a passagem do dinheiro e como tudo teria sido arquitetado. Pela tentativa de obstruir a investigação, corrupção de testemunha, partindo para a falsidade ideológica quanto a documentos. Estarreceu a mim porque no inquérito já se tem a problemática das filmagens e aí se verifica a marcha da insensatez, a repetição do mesmo erro. É subestimar a inteligência alheia, as instituições pátrias.

O governador foi audacioso?

Talvez até ingênuo por subestimar a inteligência de todos e, principalmente, daqueles que têm o dever de coibir essas práticas.

O que há mais contra o governador?

Mais dois crimes poderão ser imputados a ele (Arruda):corrupção a testemunha e falsidade ideológica. Depende agora do Ministério Público, titular da ação penal. O Ministério Público define e pode propor a ação penal.

Chocado?

O País atravessa uma quadra de abandono a princípios, perda de parâmetros, inversão de valores, de dar o dito pelo não dito, o certo pelo errado e vice-versa. Mas há o outro lado. A balança da vida tem dois pratos. Há o prato que sopesa coisas boas, o horizonte, o amanhã em busca de lisura quanto à coisa pública e, portanto, o afastamento da impunidade para que todos estejam atentos e observem as regras estabelecidas. A sociedade não tolera mais é o escamoteamento, a mesmice. A sociedade cobra uma prestação de contas.

Foi uma decisão difícil?

Quem está há 31 anos na judicatura não percebe o processo como algo tão complicado. Faz parte do dia a dia. Foi mais um processo. Tenho sentimentos conflitantes, de um lado por perceber o envolvimento do governador, de uma pessoa que estava à frente do Distrito Federal, de outro lado por perceber o episódio como alvissareiro porque revela que as instituições estão funcionando, a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário. O sentimento de impunidade tende a ser abolido, banido. O exemplo vem de cima, não é?

Por que chegou a esse ponto?

É uma cultura enraizada, uma percepção errônea quanto à coisa pública que pertence a todos. Não pertence àquele que está no cargo e aí se paga o preço por se viver numa democracia e esse preço é módico, é o respeito às regras estabelecidas. Toda vez que alguém é surpreendido numa prática discrepante da normalidade a tendência é os demais ficarem atentos, colocarem as barbas de molho, manterem freios inibitórios intensos, mais rígidos.

Vai acabar em pizza?

Os autos trazem evidências graves da prática de crimes. Que se apure tudo e prevaleça o bom direito, considerada a verdade real. Quando assumi a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, em 2006, eu disse que o Brasil precisa deixar de ser um país de faz de conta. É isso aí. Se cada qual fizer a sua parte deixaremos um Brasil melhor para nossos descendentes.

Sofreu algum tipo de pressão?

Isso para mim não existe. Enquanto eu tiver a toga sobre os ombros a única pressão que se verifica é a da minha ciência e a da minha consciência. No plenário do STF eu costumo dizer que, se com o meu voto o teto tiver que cair, que caia sobre a minha cabeça. Minha cadeira é vitalícia. Estou sempre pronto a ouvir advogados. Mas eles sabem como eu atuo. Não fui procurado por eles. Sou um homem que dorme tranquilo. Nesses 31 anos de magistratura sempre coloquei a cabeça no travesseiro sem ser atormentado por pesadelos.

O próximo passo?

Tem o julgamento do habeas corpus pelo colegiado. Levo o caso à primeira turma. Se os colegas acharem que devem deslocar para o plenário nós deslocaremos. Tenho o sentimento do dever cumprido. O quadro é terrível. Havendo ato concreto a revelar obstacularização da Justiça a manutenção da prisão é plenamente justificável. Tenho precedentes na turma exigindo ato concreto. E é este o caso.

A mobilização das ruas norteou sua decisão?

O barulho da turba não me sensibiliza. O que me sensibiliza é o fato e a ordem jurídica. Todo processo é processo, não tem capa. Esses conflitos não são mais impactantes. Atuo com leveza. Eu nunca me defrontei com situação tão extravagante envolvendo quem envolveu e com esse alcance de se tentar interferir num depoimento que seria prestado na polícia.

É o primeiro governador preso no exercício do cargo.

Tivemos governadores presos e cassados na época do regime de exceção, mas não por corrupção. Aqui é corrupção de testemunha. É corrupção.