Título: Malandragem na zona do euro
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2010, Notas e informações, p. A3
A tragédia grega virou história de malandragem, mais um estouro de bolha na grande farra do mercado financeiro. A primeira grande bolha foi a do setor imobiliário, inflada pelos empréstimos de alto risco e por uma sequência de operações obscuras e sem sustentação econômica. Esta explodiu em 2007, provocando um impacto destruidor em todos os mercados. A outra era desconhecida até há poucos dias. Os problemas do Tesouro grego foram parar nas primeiras páginas há pouco tempo. Alguns governos, como o da Grécia, haviam ido longe demais nos gastos públicos e no endividamento, mas outros também haviam desarrumado suas contas durante a pior fase da crise global. O caso grego logo se destacou, no entanto, por algumas particularidades.
Seus números eram piores que os dos outros países, mas havia algo mais grave: os números teriam sido manipulados, durante alguns anos, para ocultação do estado real das finanças públicas. Em outras palavras, o país teria fugido há mais tempo dos padrões fiscais da zona do euro. Essa trapaça tornava a história bem mais feia. Não se tratava apenas de um tropeço ocasional na condução das finanças públicas. Mas os fatos mais comprometedores só se tornaram públicos na semana passada, a partir de um levantamento publicado pelo New York Times e logo enriquecido por outros jornais.
Segundo as últimas informações, a manipulação dos números começou pelo menos em 2001, logo depois do ingresso do país na união monetária europeia. Para se enquadrar nos limites de endividamento da zona do euro, o governo grego usou um esquema elaborado pelo banco de investimentos Goldman Sachs. Empréstimos foram disfarçados como transações cambiais. Não foram, graças a esse truque, incluídos no valor da dívida pública.
A descoberta do passa-moleque chamou a atenção para esse novo aspecto da folia financeira ? a relação pouco transparente de grandes bancos com governos europeus. Em "dúzias de acordos no continente", segundo o International Herald Tribune, bancos adiantaram dinheiro contra a promessa de pagamentos baseados em receitas futuras. "A Grécia, por exemplo, negociou taxas aeroportuárias e participação em loterias de anos futuros", de acordo com a mesma reportagem.
Pelo menos para os brasileiros essa história não é totalmente nova. Também no Brasil governos hipotecaram em várias ocasiões a arrecadação futura. Operações e tentativas de operações desse tipo ocorreram nos três níveis de administração. Quando realizadas, contribuíram, quase sempre, para o desbaratamento das contas oficiais.
Também não é novidade, para os brasileiros, a participação de bancos na sustentação da gastança pública. Isso ocorreu principalmente quando os governos estaduais podiam obter crédito de instituições sob seu controle. Quando os Tesouros não tinham mais dinheiro de impostos para financiar a farra dos governadores, eles podiam apelar para os bancos.
Esse expediente era usado com maior empenho e piores consequências em anos de eleição. Um governador, segundo se conta, vangloriou-se de haver quebrado o banco estadual para eleger seu sucessor. Mas esses bancos eram controlados politicamente. Pelo menos esse componente da baderna financeira foi eliminado com a privatização ou fechamento da maior parte dos bancos estaduais, com a renegociação das dívidas de Estados e com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal.
No caso dos governos europeus, a participação do setor financeiro independeu do comando político. Os bancos eram privados e contribuíram para os desmandos com a oferta de esquemas para disfarçar o endividamento de seus clientes, isto é, dos Tesouros oficiais. Vários governos, segundo as informações divulgadas nos últimos dias, participaram da negociação de receitas futuras.
Há, portanto, duas novidades: 1) a farra dos bancos foi mais ampla do que se imaginava e envolveu também clientes oficiais; e 2) governos erraram não só por omissão, deixando de regular o sistema financeiro, mas também por ação, participando das estripulias. A tarefa da União Europeia é, portanto, mais complicada do que se supunha. Será preciso resolver a crise grega e impedir seu alastramento e, além disso, aperfeiçoar o controle dos países-membros, menos confiáveis do que imaginavam os otimistas.