Título: Um fundo sem fundamento
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/01/2010, Notas e informações, p. A3

Causou certo susto no mercado a regulamentação, divulgada quase na virada do ano, do Fundo Soberano do Brasil (FSB), pela qual o Tesouro nacional foi autorizado a atuar no mercado de câmbio para evitar uma valorização ainda maior do real. Logo em seguida, a cotação do dólar teve uma alta, que não se sustentou diante da continuidade do influxo de recursos externos. Como o Banco Central (BC) vem agindo agressivamente para conter a sobrevalorização da moeda nacional comprando dólares a rodo, parece desnecessário que o governo utilize o FSB para essa finalidade, a não ser que as autoridades julguem que o reforço do arsenal para intervir no câmbio surtirá um efeito psicológico decisivo sobre manobras especulativas. O que, diga-se de passagem, é também pura especulação.

Seja como for, o Fundo Soberano do Brasil parece uma autêntica jabuticaba ? uma exclusividade do Brasil. Por definição, fundos desse tipo foram constituídos por países, como a Noruega e os Emirados Árabes Unidos, que obtêm superávits comerciais muito elevados em razão das exportações de petróleo, ou por altíssimas receitas de exportações em geral, como a China.

O FSB é coisa nossa, muito nossa, não só porque os superávits na conta de comércio do Brasil vêm decrescendo, esperando-se que este ano o saldo positivo fique entre US$ 12 bilhões e US$ 15 bilhões, em comparação com US$ 25,3 bilhões em 2009, segundo os últimos dados revistos pelo Ministério do Desenvolvimento, incluindo a exportação de energia elétrica, que se torna assim uma nova espécie de commodity. O FSB ? até, pelo menos, que se concretizem as promessas miríficas do pré-sal ? não é claramente destinado a investimentos a mais longo prazo, de modo a dar sustentação à economia em ciclos de baixa, como os demais fundos soberanos.

O FSB poderia ser tido, em outros tempos, como uma reserva de contingência. Tanto assim que já há algum tempo se suspeitava que parte de seus depósitos de mais de R$ 16 bilhões poderia ser usada para ajudar o superávit primário do setor público a atingir a meta de 2,5% do PIB em 2009. Sabe-se agora que, mesmo estropiada, a meta deve ser alcançada e, para isso, excluem-se dos cálculos gastos do Plano Plurianual de Investimentos, ligados ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), vendem-se antecipadamente dividendos das estatais ao BNDES e extraem-se outros coelhos da prolífera cartola dos Ministérios da Fazenda e do Planejamento. E, entre estes, estão depósitos no FSB, como foi confirmado pelo secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, em entrevista ao Estado (9/1). O dinheiro do tapa-buraco será canalizado por meio do Fundo Fiscal de Investimento e Estabilização (FFIE). Aparentemente, isso não vai atrapalhar o uso de verbas do FSB para atuação na área cambial.

Pergunta-se: por que razão o Tesouro deve intervir diretamente no câmbio, em vez de deixar essa tarefa por conta do BC, que, mediante maciças compras de dólares no mercado, elevou as reservas cambiais para US$ 239,81 bilhões (posição em 7 de janeiro), US$ 51,71 bilhões a mais que no fim de janeiro de 2009 (US$ 188,10 bilhões). É verdade que, depois de intervir no mercado cambial, o BC tem de lançar mais títulos em reais para enxugar o excesso de liquidez, aumentando a dívida pública interna. Além disso, aplicando as reservas no exterior, o País recebe uma remuneração muito menor do que paga para a colocação de seus títulos. O Fundo Soberano terá de agir da mesma forma, já que os recursos de que dispõe estão depositados em títulos do Tesouro, que terão naturalmente de ser vendidos para a aquisição de dólares.

Segundo o secretário do Tesouro, "nós fizemos a regulamentação para deixar ele (o FSB) pronto, porque o governo pode achar em algum momento que é o caso de operar em moeda estrangeira. É uma opção". Arno Augustin explicou que o FSB "tem duas pernas: uma fiscal e outra não fiscal".

O que a economia brasileira requer é que o cálculo da meta do superávit primário expresse a realidade das contas públicas, sem truques e sem o ranço do casuísmo.