Título: Os companheiros enquadrados
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2010, Notas e informações, p. A3

O PT é um partido de muita sorte. Não só tem um Lula ? o maior líder de massas da história da democracia brasileira ?, como ainda ele é o mais lúcido dos seus companheiros, se não dos políticos na ativa em geral. Sem falar no seu toque de Midas, que o protege do que de outro modo seria o efeito bumerangue dos seus surtos de apoteose mental ou da sua confessada condição de "metamorfose ambulante". A mais recente prova disso veio a público ontem, com a notícia de que a executiva nacional petista vai passar um pente-fino no texto da versão presumivelmente preliminar ? antecipada por este jornal há uma semana ? do projeto da legenda para um eventual governo Dilma Rousseff.

Intitulado A Grande Transformação ? mais adequado, talvez, ao programa de um candidato oposicionista do que ao de uma pretendente que se apresenta como garantia de continuidade das políticas do seu patrono ?, o documento será oferecido ao 4º congresso nacional do partido, de quinta a sábado da próxima semana, no que se pretende seja uma sagração apoteótica da candidatura Dilma, um carnaval político logo em seguida ao de verdade. O texto acena com um novo "projeto nacional de desenvolvimento", a ser conduzido por um Estado ainda mais atuante, mediante o fortalecimento das empresas públicas e a ampliação dos financiamentos a cargo do BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

A candidata reclamou de não ter tido conhecimento prévio do papel. O PMDB, do sabor esquerdista do que o presidente da agremiação e possível vice de Dilma, Michel Temer, chamou "prato feito". E o presidente Lula disse numa reunião de coordenação do governo que já faz aquilo que o PT espera de sua aspirante a sucessora. Notou, ainda, que a louvação do estatismo, combinada com o silêncio do texto em relação aos princípios macroeconômicos mantidos no seu governo, poderia ser interpretada como intenção de mexer nos pilares da estabilidade a que não poucos setores do partido aderiram a contragosto. Ele poderia ter comentado, se é que não o fez, que o programa parece uma Carta aos Brasileiros às avessas.

O documento de 2002 veio para tranquilizar, comprometendo um futuro governo Lula com o respeito aos contratos e às bases da política econômica dos anos Fernando Henrique (o que o sucessor chamaria "herança maldita", sem abandoná-la). Já o plano petista veio para inquietar ou, nas palavras do seu crítico-mor, para criar, em vez de evitar, "marolas". Chamados à ordem, os companheiros aceitaram deixar explícito que Dilma preservará o tripé formado pelo ajuste fiscal, o câmbio flutuante e as metas de inflação. Há uma certa lógica no fato de a mudança ter sido anunciada pelo ainda presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini logo depois da festa armada no plenário da Câmara pelos 30 anos da legenda.

Lula, afinal, conservava intacto o seu pragmatismo, enquanto companheiros desavisados adotavam pelo valor de face, apenas esperando a hora de levar à prática, a sua própria retórica radical. O mais interessante de tudo é que ele viria a decepcionar aqueles dos seus que imaginavam que a Carta aos Brasileiros era um mero expediente tático, destinada à lata de lixo da história, para usar o jargão de praxe, assim que o signatário assumisse o poder. A esta altura, é ocioso discutir se Dilma, caso eleita, tentará mudar o curso da política econômica fingindo que o segue. Certo é que, durante a campanha, o PT insistirá em defender perante um eleitorado refratário a marolas a "gestão fiscal responsável", como diz Berzoini de boca cheia.

"Quem quer mudar isso é o PSDB", fustiga, numa alusão às desastradas declarações nesse sentido do presidente tucano Sérgio Guerra, trazendo à lembrança antigas diferenças entre o então ministro do Planejamento, José Serra, e o da Fazenda, Pedro Malan. O PT desfilar como o guardião da estabilidade e desafiando implicitamente a oposição a dizer a que vem nessa matéria é o suprassumo da ironia, mas também espelha uma inescapável realidade: os tucanos falam em comparar os currículos de Serra e Dilma, mas calam sobre o que fariam se recuperassem o governo. Enquanto isso, Lula não só comanda a campanha antecipada de sua eleita, mas lança mão da sua sagacidade política para manter a sua gente nos trilhos.