Título: Haiti ignora lições do tsunami
Autor: Charleaux, João Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2010, Internacional, p. A14

Erros cometidos na Ásia foram repetidos no terremoto haitiano

O tsunami que há 6 anos varreu o Oceano Índico e matou, segundo cifras oficiais, 226 mil pessoas, deixou uma cartilha de trágicas lições para o Haiti, onde o número de mortos varia entre 170 mil e 230 mil, de acordo com dados do governo. Metade das lições do tsunami, porém, não foi seguida nos dias seguintes ao terremoto do dia 12 no Haiti. A outra metade só será posta à prova ao longo dos próximos dez anos, durante a reconstrução.

O primeiro erro no Haiti foi cometido antes mesmo da tragédia. Segundo especialistas, as construções precárias não ofereciam nem resistência nem maleabilidade para suportar desastres naturais ? algo compreensível num país miserável, mas que explica, em parte, porque há mais vítimas em terremotos de mesma magnitude em nações pobres do que em ricas.

RECONSTRUÇÃO

Na Indonésia, país mais castigado pelo tsunami de 2004, as autoridades investiram na construção de 50 mil novas casas populares só no ano passado. As novas residências são feitas sobre fundações mais profundas que as anteriores.

"É fundamental obedecer ao critério de reconstruir melhor do que antes", disse Markus Schutze-Kraft, diretor do International Crisis Group para a América Latina. "As novas construções devem ser resistentes a desastres futuros", advertiu Patrick Fuller, porta-voz da Federação Internacional da Cruz Vermelha para Ásia e Pacífico, que ainda trabalha na reconstrução pós-tsunami na Malásia.

Segundo Fuller, há outras duas lições a ser seguidas na reconstrução do Haiti. "Primeiro, os sobreviventes devem ser ouvidos sobre quais são as prioridades. Depois, a ajuda levada ao país tem de servir para reduzir a desigualdade social, e não para fazer com que a desigualdade cresça ainda mais."

Além disso, segundo ele, voluntários locais devem ser treinados para agir nos próximos desastres e o governo tem de ter um plano de coordenação preestabelecido com ONGs de ajuda humanitária. As medidas listadas por Fuller são factíveis mesmo para um governo pobre, como o haitiano.

Se o futuro ainda dá a chance de que as lições do tsunami sejam aplicadas no Haiti, o passado mostrou o contrário. O melhor exemplo foi o destino dos cadáveres. Nos primeiros dias após o desastre haitiano, o ministro da Defesa do Brasil, Nelson Jobim, defendeu, em visita a Porto Príncipe, o enterro de corpos em covas coletivas.

A medida, segundo ele, impediria o surgimento de epidemias. Haitianos mortos foram, então, carregados por escavadeiras e jogados em covas coletivas, enquanto outros eram queimados nas ruas. "Esse é um mito que teremos de combater por muitos anos", disse o médico legista do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), Morris Tidball-Binz. "Pessoas sãs mortas por traumas não transmitem epidemias. Mas o impacto para a saúde mental coletiva, de enterrar corpos sem identificá-los, retarda por gerações a recuperação de um país."

O brasileiro Renato Souza, que até janeiro chefiava o serviço de psicologia da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) e esteve no tsunami, concorda. "A busca pelo paradeiro de um parente desaparecido pode doer mais que as feridas físicas de um desastre."

A falta de coordenação entre organizações civis e Forças Armadas ? especialmente as dos EUA ? foi outro nó no caso haitiano. Especialistas acreditam que o fato de a ONU ainda considerar o Haiti um lugar inseguro, na época do terremoto, fez com que os militares tentassem monopolizar a logística, pensando antes na segurança do que no socorro às vítimas.

No Sudeste Asiático, os militares tiveram melhor integração na logística da distribuição de alimentos, pois o único país em conflito na região era o Sri Lanka.

MISSIONÁRIOS

Ainda ontem, uma fonte judicial em Porto Príncipe disse que o juiz responsável pelo caso dos 10 missionários presos com 33 crianças haitianas na fronteira com a República Dominicana deve libertar os americanos hoje, ao considerar que não agiram com "intenções criminosas". Não se sabe se o juiz dará andamento ao processo.