Título: China não está pronta para ser potência
Autor: Trevisan, Cláudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/02/2010, Internacional, p. A20

Prestes a ultrapassar o Japão e assumir o segundo lugar entre as maiores economias do mundo, a China não está preparada para desempenhar o papel de potência global, sustenta David Shambaugh, diretor do programa sobre China da Universidade George Washington e estudioso do país há 35 anos. Shambaugh iniciou em agosto de 2009 um período de um ano de pesquisas em Pequim para seu próximo livro, China Goes Global ("China se Globaliza", em tradução livre), no qual analisará a ascensão internacional do antigo Império do Meio. Em sua opinião, a China será uma potência "confusa", na qual coexistirão múltiplas identidades, cujos extremos são a de um país em desenvolvimento e a de um superpoder. Autor de várias obras sobre a China, Shambaugh afirma que há um exagero na percepção da influência global do país, que seria bem menor do que se supõe em áreas cruciais, como força militar, investimentos externos e projeção cultural.

Em entrevista ao Estado, o professor defende a necessidade de o Brasil desenvolver uma estratégia para se relacionar com a China, sob o risco de transformar-se em neocolônia de um país que necessita quantidades crescentes de recursos naturais para manter seu ritmo de expansão. Shambaugh esteve no Brasil duas vezes, a última em meados do ano passado, quando participou de seminário promovido pelo Conselho Empresarial Brasil-China. A seguir, a entrevista, concedida em um café de Pequim:

Há uma mudança na maneira como a China se vê no mundo?

O resultado da crise financeira global fez com que eles se sentissem mais confiantes em relação a seu modelo de desenvolvimento. Eles acreditam que o modelo ocidental deixou o mundo à beira do colapso e a crise confirmou suas próprias crenças. Mas também os deixou falsamente confiantes.

Por que falsamente?

Eles acreditam que o modo como fazem as coisas, com pesados subsídios e forte intervenção do Estado, esse misto de economia de mercado com presença estatal, é um bom modelo. Mas no fim, o excesso de intervenção estatal provoca distorções e acredito que os chineses estão indo nessa direção.

Há quase dois anos o sr. escreveu um artigo sobre dois tipos de nacionalismo existentes na sociedade chinesa, um xenófobo e agressivo e outro confiante e cosmopolita. Qual dos dois ganhou espaço desde então?

Eu escrevi o artigo pouco antes da Olimpíada e esperava que o nacionalismo confiante fosse vencer. Ao realizar a Olimpíada, a dignidade chinesa estaria restaurada e eles poderiam emergir no mundo como uma potência menos insegura e mais cooperativa. Mas hoje, fevereiro de 2010, tenho de dizer que o outro nacionalismo, o nacionalismo ressentido, está vencendo.

Nos últimos meses houve uma mudança real, que ainda está em andamento. Desde novembro nós estamos vendo atitudes perturbadoras do governo chinês, em uma série de questões. Há um tipo de atitude que não existia antes da crise.

O sr. poderia dar exemplos?

É só ler as declarações do porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Ma Zhaoxu, sobre o Google, venda de armas a Taiwan, cúpula de Copenhague, Liu Xiaobo (dissidente condenado a 11 anos de prisão), apreciação do yuan, qualquer tema. Eles estão usando uma retórica bastante inflamada e agressiva.

Muitos dos temas que o sr. mencionou estão relacionados aos EUA, que também adotaram no último mês posições mais agressivas em relação à China, como o discurso da secretária de Estado Hillary Clinton em defesa da internet livre, o anúncio da venda de armas a Taiwan e as declarações do presidente Barack Obama em favor da apreciação do yuan.

Os EUA e vários outros países vêm pedindo a valorização do yuan há três, quatro anos. Os chineses não estão fazendo nada em relação a isso. O discurso de Hillary não era voltado apenas para a China. Ela estava falando de valores que os americanos consideram universais, como liberdade de expressão. Devemos parar de acreditar em nossos valores porque eles ferem os sentimentos de 1,3 bilhão de pessoas? Não. O problema é deles, não nosso.

Seu próximo livro se chamará "China Goes Global". Como o sr. vê essa China global?

Acredito que vamos ver uma China confusa no palco mundial, uma China que ainda não está pronta para ocupar essa posição. A ascensão foi muito rápida e eles não estão preparados. O que vemos hoje é uma China que ainda está muito preocupada com seus interesses nacionais em um sentido estreito. Não é uma China que vê a humanidade e a governança global em termos que requerem soluções globais. A primeira coisa que eles se perguntam é "o que isso trará para nós?".

Eles só estão interessados em Taiwan, Tibete, crescimento econômico e manutenção do Partido Comunista no poder. Se há um genocídio em país africano ou um desastre natural, eles não pensam que é seu dever atuar.

No livro eu argumento que a China será uma potência confusa, porque é um país com múltiplas identidades. Uma delas é a Sul-Sul, a de um país em desenvolvimento que tem interesses semelhantes aos de outros países em desenvolvimento.

Essa é uma das razões pelas quais o governo brasileiro está tão interessado na China, pelo que percebi na visita que fiz ao Brasil. O que a China fez na Conferência do Clima em Copenhague? Aliou-se com o Sul contra os países desenvolvidos. A outra identidade é a da potência da Ásia. Há pessoas na academia e no governo que dizem que a China deveria deixar de se preocupar com o restante do mundo e se concentrar em sua vizinhança.

O terceiro grupo é o da política externa das grandes potências, que defende a prioridade do relacionamento com EUA e Rússia. Para eles, o mais importante é ter essas relações cruciais em ordem. Essa era a visão de Jiang Zemin (secretário-geral do Partido Comunista de 1989 a 2002), mas não é a de Hu Jintao.

A quarta corrente é a dos globalistas, que são os multilateralistas. Eles acreditam que a China precisa assumir um papel mais relevante na governança e nas instituições globais, compatível com seu novo poder. É um grupo pequeno, mas ele existe. O último grupo são os realistas, que são favoráveis a que a China atue como uma superpotência e use todo seu poder para moldar uma ordem mundial que a beneficie.

O argumento de meu livro é o de que essas cinco visões concorrentes coexistem na China, o que dá uma múltipla e conflitante identidade ao país no cenário internacional. Nenhuma delas prevalece isoladamente, com exceção da ideia de desenvolvimento doméstico.

Isso também permite que a China use essas diferentes "personas" de acordo com seus interesses. Em Copenhague é conveniente ser um país em desenvolvimento. No confronto com os Estados Unidos o país pode assumir o papel de superpotência.

Sim. Cada uma dessas personalidades aparece em diferentes situações. Por isso, é difícil ter uma visão clara da China. É o número1? É o 2, 3, 4, 5? A resposta é: todas as opções acima.

Mas é inquestionável que a China assumiu um papel global, não?

Outro argumento de meu livro é que a presença da China não deve ser superestimada. A China tem uma presença internacional pequena em três das cinco áreas que eu analiso no livro, que são diplomacia, instituições internacionais, cultura, economia e poderio militar.

Eles são ativos na diplomacia, estão em todos os lugares e, de maneira geral, têm uma participação bastante construtiva. Nas instituições internacionais, eles são mais ativos do que costumavam ser, mas não moldam a agenda da ONU. Eles estão ainda reagindo a propostas colocadas por outros países e não apresentam iniciativas próprias.

A terceira área é a cultura, o chamado soft power, que é virtualmente inexistente. Pela definição de Joseph Nye, soft power é a habilidade de fazer com que os outros queiram o que você quer. É um poder não coercitivo, de atração. Ele não tem nada a ver com o governo e tem tudo a ver com as sociedades, como elas são organizadas, quais são seus valores e como funcionam seus sistemas políticos. As pessoas querem imitar outro país porque o respeitam. Ninguém quer imitar a China.

Na área econômica, é claro que a presença comercial deles é imensa. Mas o investimento em outros países é muito pequeno. No ano passado foram US$ 95 bilhões, quase o dobro do ano anterior. O valor está crescendo, mas corporações americanas investem individualmente US$ 95 bilhões. É muito pouco para uma economia do tamanho da chinesa.

As multinacionais da China não são muito conhecidas e não possuem marcas globais. Além disso, não são verdadeiras multinacionais, porque não têm um staff multinacional, não têm um board de diretores multinacional, não têm CEOs estrangeiros. Quantas marcas chinesas possuem projeção global? Talvez elas possam ser contadas nos dedos de uma mão.

Por fim, a presença militar global é inexistente. A China não tem nenhuma base no exterior e eles dizem que não querem ter. Eles não têm nenhuma projeção de poder fora de sua periferia.

Quais são os riscos do relacionamento com a China para um país em desenvolvimento como o Brasil, que possui recursos naturais nos quais os chineses estão interessados?

O Brasil deveria analisar cada proposta chinesa com bastante cautela, tendo em vista o seu interesse nacional. Vocês não querem se colocar em uma posição de neocolônia com a China nem com qualquer outra potência. Faz todo o sentido vender recursos naturais para desenvolver a economia brasileira, mas os interesses estratégicos do país devem ser protegidos.

O governo brasileiro precisa ter um plano estratégico para a China. Essa foi a mensagem final da palestra que proferi em São Paulo em 2009. Eu dediquei parte dela a dizer que o Brasil precisa desenvolver uma capacidade doméstica para lidar com a China. E isso tem vários componentes: universidades, língua, inteligência, treinamento de funcionários públicos e diplomacia.