Título: A China será cada vez mais agressiva
Autor: Trevisan, Cláudia
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/02/2010, Internacional, p. A14/15

Analista fala sobre o surgimento de um mundo multipolar e diz que a internet mudou o modo de agir dos líderes chineses

A crise econômica mundial mudou de "maneira dramática" a maneira de pensar dos líderes chineses e os forçou a se envolver mais cedo do que gostariam em questões políticas globais. O diagnóstico é do consultor americano Robert Lawrence Kuhn, que há duas décadas se divide entre EUA e China, onde tem acesso privilegiado a dirigentes do Partido Comunista.

No ano passado, Kuhn lançou o livro How China"s Leaders Think ("Como os Líderes Chineses Pensam", em tradução livre), baseado em entrevistas com cem ocupantes de cargos de comando, incluindo Xi Jinping e Li Keqiang, que em 2012 deverão suceder Hu Jintao e Wen Jiabao nos cargos de presidente e primeiro-ministro do país, respectivamente.

O orgulho em relação ao passado glorioso e à recente ascensão no cenário internacional é um dos fatores que orientam a contundente reação da China, avalia Kuhn. Nessa categoria, entram a venda de US$ 6,4 bilhões em armas a Taiwan pelos EUA e os gestos de apoio americano ao dalai-lama.

Em sua opinião, a disseminação da internet fortaleceu a opinião pública chinesa, mas adicionou um elemento de imprevisibilidade às reações do país a questões internacionais. "Em geral, os "netizens" ("cidadãos da internet", como são chamados os internautas na China) são mais nacionalistas e agressivos do que seus líderes. Portanto, em alguns casos, os governantes têm de ser mais agressivos do que gostariam de para controlar sua própria população", disse. A seguir, os principais trechos da entrevista que Kuhn concedeu ao Estado.

Desde a cúpula de dezembro sobre mudança climática em Copenhague, vários analistas afirmam que a China assumiu uma posição mais agressiva em questões globais. O sr. concorda?

Sim. Mas a razão é mais complexa do que as pessoas imaginam. A crise financeira global provocou uma mudança dramática na maneira como os líderes chineses pensam e isso não foi escolha deles. Os dirigentes chineses teriam preferido ter mais 10 ou 15 anos de relativo isolamento, sem muito envolvimento com questões políticas globais, para enfrentar os enormes problemas da China, como o desequilíbrio social e a corrupção.

A China não teve alternativa?

A China não pode mais tomar conta de si própria sem estar ativamente envolvida em questões globais. Essa mudança ocorreu no fim de 2008 e começo de 2009. Essa é a primeira razão. A segunda é a realização do 18º Congresso do Partido Comunista, em 2012, quando uma nova geração de líderes assumirá o poder. Sempre que há uma mudança de governantes, há uma tendência natural para um discurso mais nacionalista no período que a antecede. O terceiro fator é o orgulho chinês em relação à emergência da China como um poder global. Nos séculos 19 e 20, a China foi oprimida por potências estrangeiras, colonizada por outros países e atacada pelo Japão. Agora que está ressurgindo como um dos mais poderosos países do mundo, há um elemento de orgulho. Se os chineses sentem que seus interesses estão sendo ameaçados, eles serão muito mais agressivos na manifestação desse orgulho.

Estas três razões se refletem nas atitudes dos líderes chineses?

Há outro elemento que determina o comportamento dos líderes do país. A China hoje é muito influenciada pela opinião pública e pelo que acontece na internet. Em geral, os "netizens" ("cidadãos da internet") são mais nacionalistas e agressivos do que seus líderes. Portanto, em alguns casos, os governantes têm de ser mais agressivos do que gostariam para controlar a população. É uma psicologia muito interessante.

Quais são os principais tópicos de potencial conflito entre a China e o restante do mundo?

Uma questão central é o desequilíbrio comercial e tensões provocadas pela percepção de que a moeda chinesa está subvalorizada, o que quase todo mundo reconhece como verdadeiro, incluindo a China. Acredito que o governo permitirá uma gradual apreciação da moeda em este ano, na medida em que a situação econômica continue a melhorar.Outros temas são relacionados ao que a China vê como aspectos de sua soberania. O país estará, em breve, muito mais envolvido com o mundo e sempre haverá algo ocorrendo.

O caso Google é um exemplo disso?

Sim. Quem sabe onde está a verdade? Certamente parece que o Google e várias outras companhias foram alvo de ataques de hackers e, provavelmente, isso teve origem na China. Algumas pessoas pensam que as ações foram autorizadas pelo governo e pelo Exército. Acho improvável. Mas considero provável que os ataques estejam relacionados a jovens hackers chineses nacionalistas. Também pode ser espionagem industrial.

Até onde a China é capaz de levar essa briga?

A questão é: haverá mais coisas como essa acontecendo no futuro porque a China estará envolvida em muitas coisas. Pode haver colisão de submarinos. Quem sabe o que vai ocorrer? Portanto, é o momento de líderes sábios de todos os lados permitirem a manifestação apropriada de sentimentos nacionalistas de seu próprio povo, mas, ao mesmo tempo, gerenciarem esse processo, porque a China não pode sobreviver sem o resto do mundo.

O sr. se surpreendeu com a reação de Pequim à venda de armas a Taiwan pelos EUA?

A resposta excedeu o que eu esperava. E o confronto ocorreu no momento em que as relações entre a China e os EUA estavam no seu melhor momento em décadas. Eram relações excelentes. Ao vender as armas tão no início de seu mandato, talvez o governo de Barack Obama tenha sinalizado que terá uma política mais agressiva em relação à China. Talvez porque isso tenha sido interpretado dessa maneira pela China, o país teve de reagir de maneira mais contundente. É uma especulação, mas, por enquanto, é uma boa resposta.

Na semana passada, a Casa Branca confirmou que Obama se encontrará com o dalai-lama e a secretária de Estado, Hillary Clinton, fez um discurso em defesa da internet, no qual criticou a China. Há mesmo um endurecimento dos EUA em relação à China?

Sim. Acredito que ele é motivado por questões políticas internas, para satisfazer certos grupos do Partido Democrata, dos sindicatos que apoiaram Obama e apoiam a reforma do sistema de saúde. Em especial depois da derrota dos democratas na eleição de Massachusetts, eles estão preocupados com a necessidade de criar uma mobilização doméstica em torno do presidente. Todos os países usam crises internacionais para gerar mobilizações internas em torno de seus líderes.

O sr. acredita na ideia de um G-2 entre EUA e China?

Eu não diria um G2, mas eu acredito que a relação bilateral entre os EUA e a China sejam um elemento-chave para a estabilidade e a prosperidade do século 21. Isso dito, eu também acredito que os Estados Unidos têm de se acomodar melhor a um mundo em transformação, um mundo multipolar. Quando houve a queda da União Soviética e os EUA tornaram-se a única potência mundial, a China começou a defender a ideia de um mundo multipolar. Mas, naquela época, a China não era forte.

Qual o papel do Brasil nesse mundo multipolar?

Em razão da crise financeira global e da crise nos EUA e em outros países ocidentais desenvolvidos, estamos realmente entrando em um mundo multipolar. O Brasil está certamente entre os países que precisam assumir mais responsabilidades, assim como China, Rússia e Índia.

O sr. acha que a multipolaridade atenua a importância de crises bilaterais?

Claro que sim. Por isso, este é um mundo maior do que um eventual G-2. Quando você tem um G-2, a possibilidade de confronto é mais clara, como no caso de EUA e União Soviética. Mas, se você tem um mundo multipolar, qualquer problema se torna menos importante. Ainda assim acredito que a relação entre EUA e China é a área número 1 em que podem haver oportunidades e problemas que facilitem a aproximação.

Como essa relação pode prosperar com os confrontos recentes?

A situação não deveria deteriorar mais por causa do enorme interesse de ambas as partes, e de todo o mundo, em conter os problemas e caminhar na direção de um entendimento. Mas há outros fatores envolvidos. O mundo é tão interconectado e a comunicação tão instantânea que qualquer tipo de perturbação é amplificada. Não há tempo para reflexão. A China tem de reagir de maneira imediata ao anúncio da venda de armas para Taiwan porque isso está imediatamente na internet.

Qual o impacto da revolução tecnológica na maneira pela qual o governo chinês reage às crises?

Hoje, se o governo não diz nada imediatamente, ele perde controle da própria população. E você sabe que o povo chinês é nacionalista e patriótico. Há muitas palavras para descrever isso em inglês. Patriótico é uma palavra simpática. Nacionalista começa a ser neutro. Xenófobo é ruim. Por causa de sua história, os chineses são nacionalistas e patrióticos e os governantes não podem ficar atrás . Eles têm de reagir instantaneamente a todas essas questões. O nacionalismo é um problema, especialmente quando amplificado pela internet.