Título: Brasil começa a registrar clones
Autor: Escobar, Herton
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/01/2010, Vida&, p. A22

Réplicas de bois e vacas agora têm direito à identidade, o que permite que sua genética seja comercializada

Já faz algum tempo que os clones caminham incógnitos pelos rebanhos bovinos brasileiros. Cerca de 70 animais foram clonados comercialmente no País nos últimos anos, segundo fontes do setor, mas nenhum deles tinha registro genealógico - o equivalente a uma carteira de identidade ou CPF - até agora. Os primeiros registros só foram dados no ano passado, após um longo processo de negociação das associações de criadores com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

Divisa Mata Velha TN 1, uma bezerra nelore nascida em Uberaba, Minas Gerais, é o primeiro clone zebuíno com "CPF" do mundo. O registro foi concedido em 1º de dezembro pela Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ), a principal entidade da pecuária nacional - já que 80% do rebanho brasileiro é de raças zebuínas, principalmente a nelore. "É um marco para o setor, sem dúvida", diz o superintendente técnico da ABCZ, Luiz Antonio Josahkian, que desde 2005 batalhava pela aprovação das normas.

"O ponto-chave disso tudo é que, com o registro genealógico, o clone passa a ter valor comercial. Antes, era como se os animais não existissem", explica o pesquisador Rodolfo Rumpf, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, um dos pioneiros da clonagem no Brasil e corresponsável pelo projeto. "A perspectiva agora é que aumente muito a demanda por essa tecnologia."

A bezerra clonada é uma cópia genética da vaca Divisa Mata Velha, animal símbolo da fazenda Mata Velha, referência nacional em gado nelore. A sigla TN1 acrescida ao nome indica que o animal foi produzido pela técnica de transferência nuclear, que é a base da clonagem. Ela é a terceira vaca a merecer esse "sobrenome" no País. Antes dela, duas bezerras da raça Jersey já haviam sido registradas como clones em julho, no Rio Grande do Sul (mais informações nesta página).

Na maioria dos casos, a clonagem é usada para preservar o DNA de um animal elite, de alto valor genético (e monetário). São animais "top de linha", usados exclusivamente para fins reprodutivos, como doadores de genes para outras gerações - seus filhos, netos e bisnetos - que vão disseminar suas características pelo rebanho. O valor comercial, portanto, não está no animal em si, mas na sua "genética", que pode ser comercializada por meio de sêmen (no caso dos machos), embriões (no caso das fêmeas, já que os óvulos não podem ser congelados) ou crias, obtidas de cruzamentos selecionados.

A Divisa original passou a vida em Uberaba, mas têm descendentes espalhados pelos rebanhos de todo o País, que compartilham suas características de boa mãe e boa reprodutora. "A Divisa representa o que temos de melhor em seleção na Mata Velha. É um patrimônio genético que fazemos questão de preservar", diz o diretor da fazenda, Nilo Muller Sampaio Jr. Aos 17 anos, a ex-campeã brasileira já é idosa para uma vaca. Seus óvulos são aspirados só duas vezes por ano.

Já a "nova Divisa" está com quatro meses. Assim que chegar à idade reprodutiva, dentro de um ano, sua genética poderá ser comercializada também. "Temos planos de clonar vários outros animais", diz Sampaio. "Vamos clonar tudo agora."

BOM NEGÓCIO

Há pelo menos seis empresas trabalhando com clonagem comercial no País, além de vários laboratórios acadêmicos. "O Brasil é referência mundial nessa área. Estamos na fronteira do conhecimento", diz o especialista Flávio Meirelles, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos da Universidade de São Paulo (USP), em Pirassununga, no interior paulista, cujo grupo já produziu 36 clones em parceria com empresas da região. "A demanda por clones já é alta. Estamos quase no limite da nossa capacidade de produção."

O clone da Divisa Mata Velha foi produzido pelo laboratório Geneal, em Uberaba, em colaboração com a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, que desenvolveu a tecnologia de clonagem e transferiu o conhecimento para a empresa por meio de uma Parceria Público-Privada.

Segundo o superintendente da Geneal, José Olavo Mendes Junior, 26 embriões clonados foram transferidos para vacas receptoras, dos quais 5 produziram gestações. Dois clones chegaram a termo. Um sobreviveu.

"Foi um resultado fantástico", avalia Mendes Junior. A taxa média de sucesso da clonagem para fêmeas, segundo ele, é de 1% a 3% - ou seja, um a três clones vivos para cada cem embriões transferidos. Para machos, o índice é um pouco melhor: chega a 10%.

Cada clone custa R$ 50 mil. Uma das exigências para o registro é a apresentação de um teste comparativo de DNA, feito em laboratório credenciado, provando que o animal é mesmo um clone, geneticamente idêntico ao outro. Além disso, o proprietário do animal clonado precisa apresentar uma carta comprovando que deu consentimento à clonagem - uma salvaguarda à produção de "clones piratas", já que bastaria roubar uma amostra de pelos de um animal para cloná-lo. "Você pode até fazer o clone, mas não vai conseguir registrá-lo", afirma Josahkian, da ABCZ.

Clones produzidos antes da normatização poderão obter registro retroativo, dependendo de uma análise caso a caso pelo ministério. Os que nascerem agora poderão ser registrados diretamente pelas associações. Três já conseguiram autorização do ministério para isso: as de gado zebu (desde maio), jersey e holandesa (desde abril).

PERGUNTAS E RESPOSTAS

Qual a diferença entre um clone e um filhote?

O clone é uma cópia genética idêntica ao animal original, equivalente a um gêmeo univitelino, enquanto que um filhote combina material genético de dois animais (pai e mãe). O filhote, portanto, preserva apenas metade do material genético do animal original.

Qual a vantagem do clone?

Alguns animais têm características tão excepcionais (qualidade de carne, de leite, resistência a doenças, fertilidade, precocidade, etc) que vale a pena preservar sua genética na íntegra. Essas características podem ser comercializadas por meio de sêmen ou embriões, para fazer o melhoramento genético dos rebanhos.

Por que as taxas de sucesso são tão baixas?

A clonagem exige que o genoma de uma célula "adulta", já diferenciada, seja totalmente reprogramado geneticamente para se comportar como uma célula embrionária, indiferenciada, capaz de produzir um organismo inteiro. Um processo biológico super complexo. A maioria dos embriões não se desenvolve, e a maioria dos fetos morre na gestação ou no parto.

Que outras espécies já foram clonadas?

O primeiro mamífero clonado foi a ovelha Dolly, em 1996. Desde então foram clonadas vacas, cabras, porcos, camundongos, ratos, cavalos, cães, gatos e vários outros animais. Nenhum ser humano.