Título: Equilibrado delírio?
Autor: Malan, Pedro S.
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/01/2010, Espaço Aberto, p. A2

"Lula quer uma campanha de comparação entre governos, um duelo com o tucano da vez. Se o PSDB quiser o mesmo... ganharão os eleitores e a cultura política do País." Assim escreveu Teresa Cruvinel, sempre muito bem informada sobre assuntos da seara petista, em coluna de um janeiro de outro ano eleitoral - 2006 -, exatos quatro anos atrás.

Trago de volta essa lembrança por três razões: primeiro, porque a jornalista ocupa hoje importante posição no esquema de comunicação oficial do atual governo. Segundo, porque essa tem sido e, ao que tudo indica, será a linha mestra da campanha do governo e de sua candidata à Presidência. Terceiro, porque, como escrevi à época, não acredito que a "cultura política do País" e seus eleitores tenham algo a ganhar - ao contrário - com uma obcecada tentativa de concentrar o debate eleitoral de 2010 numa batalha de marqueteiros e militantes brandindo estatísticas.

Na verdade, o Brasil chega a 2010 mais autoconfiante e respeitado internacionalmente devido, em larga medida, ao trabalho de décadas e ao talento de milhões de brasileiros, na agricultura, na pecuária, nas indústrias, nos serviços, no comércio (nacional e internacional), nas empresas privadas (trabalhadores e empresários) e no serviço público digno desse nome. O Brasil não chegou até aqui apenas nos últimos sete anos, movido pela genialidade e pelo tirocínio de uma pessoa, por mais que assim o pretenda o culto de personalidade e o processo de pré-beatificação ora em curso.

Há muito, mas muito ainda por fazer neste país - o que não significa desconhecer o feito por várias administrações, inclusive a atual - e é este muito por fazer ainda que deveria estar no centro do debate público neste ano de 2010, um olhar à frente, e não um olhar posto no espelho retrovisor, voltado para uma estrada já trilhada, comparando os "grandes feitos" de um governo que termina com os de seus antecessores, como se fossem eventos independentes, e não relacionados.

Por exemplo, em artigo publicado domingo passado no Globo e na Folha - Não foi o PT nem o PSDB, foram os dois -, o jornalista Elio Gaspari, baseado em trabalho do professor Claudio Salm sobre as Pnads de 1996, 2002 e 2008, chamou a atenção do leitor para o fato de que os números indicam que, "desde 1996, a linha de melhoria de vida do "andar de baixo" é contínua, sem inflexão petista". Vozes discordantes surgirão para debater detalhes, mas o importante é dar eficaz continuidade ao processo.

Assim concluí meu primeiro artigo neste espaço, já lá se vão quase sete anos: "O que é legítimo e razoável esperar do governo Lula é que possa entregar a seu sucessor um país melhor do que aquele que recebeu, como fez o governo FHC." Foi com a mesma frase que abri, nesta mesma página, meu artigo de janeiro de 2006, adicionando: "Continuo com a mesma visão, agora reforçada por aquilo que espero possam ser lições da crise que afetou o PT e o governo Lula desde meados de 2005, dentre elas, como notou R. da Matta: "O abalo da crença de que existem pessoas, partidos e ideologias capazes de mudar magicamente o Brasil"."

Um belo livro de Eduardo Gianetti contém páginas brilhantes sobre as duas lapidares inscrições do templo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo" e "Nada em excesso." Sobre as quais deveriam refletir aqueles que não conseguem impor certos limites à empolgação consigo mesmos e ao autoelogio, num processo de "inflação de si" e de "deflação do outro", que em nada contribui, ao contrário, para o desenvolvimento da cultura política do País. Muito menos para o que deveria ser o importante debate de 2010 sobre os rumos do Brasil pós-Lula.

Nesse sentido, tem razão, a meu ver, o governador Aécio Neves quando semanas atrás escreveu que "devemos estar preparados para responder à autoritária armadilha do confronto plebiscitário e ao discurso que perigosamente tenta dividir o País ao meio, entre bons e maus, entre pobres e ricos, entre nós e eles". A melhor forma de tentar evitar essa armadilha maniqueísta é, como sugerido pelo governador José Serra, "através de um bom debate" que permita que "as forças com maior lucidez política" possam mostrar ao eleitorado a complexidade dos desafios a enfrentar a partir de 2011, sem desmerecer avanços realizados, mas reconhecendo problemas que não são nada triviais, em particular nas áreas fiscal, previdenciária, de infraestrutura, educação e meio ambiente.

Seria, talvez, esperar demais que o debate eleitoral pudesse ir além da luta pelo controle do aparelho do Estado e que tratasse, também, de duas questões de fundo. A primeira diz respeito a tema que abordei em meu último artigo: a visão, a meu ver, equivocada, de que a crise que assolou o mundo desenvolvido desde o final de 2007 - e a forma de sua superação, via explosão do déficit e da dívida pública nos países ricos (temporária, porque terá de ser revertida) - teria representado a emergência de uma nova era com a vitória de um agora hegemônico capitalismo de Estado. A segunda questão de fundo foi colocada com a clareza habitual por José Murilo de Carvalho em entrevista a este jornal (6/12). Vale citá-lo: "A construção de uma democracia sem República me parece pouco viável. República significa coisa pública, virtude cívica... exige predomínio da lei, igualdade perante a mesma, ausência de privilégios e hierarquias sociais, cidadãos ativos, governos responsáveis e eficientes... República é incompatível com patrimonialismo, clientelismo, nepotismo, fisiologismo."

"Pode-se argumentar", continua o autor, "como muitos fazem, que nossa democracia não precisa de República, que aos trancos e barrancos vamos construindo a inclusão política e social e que preocupação com honestidade política, bom governo, valores cívicos e instituições respeitadas é moralismo pequeno-burguês." Mas - como José Murilo - espero que haja um número crescente de brasileiros que discorde dessa posição. Os eleitores dirão.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC. E-mail: malan@estadao.com.br