Título: Alimentando a cultura das transgressões
Autor: Filho, André Franco Montoro
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2010, Espaço aberto, p. A2

O recente episódio da cassação do prefeito e 24 vereadores na cidade de São Paulo, por decisão de um juiz de primeira instância, explicita, de forma dramática, um dos mais perniciosos aspectos da origem e do desenvolvimento da cultura das transgressões no Brasil. Em termos gerais podemos afirmar que existe em nosso país certa condescendência com o descumprimento de regras e obrigações legais e uma relativa passividade diante de desvios de conduta e comportamentos não éticos. Pode haver uma forte reação inicial, mas passado certo tempo as transgressões são esquecidas e até perdoadas.

A relação entre a cassação dos vereadores e a cultura das transgressões tem sua origem na generalizada convicção, no País, de que basta uma lei para corrigir problemas. Muitos acreditam que com a simples formulação de uma aperfeiçoada legislação se consegue enquadrar ou produzir uma nova realidade. Essa é uma visão simplista e equivocada. Na verdade, a lei pode regular ou disciplinar atividades humanas, pode estimular ou punir padrões de comportamento, mas não muda a natureza das coisas. Por mais polícia, fiscalização e punição que exista, a lei que não respeite a natureza do comportamento humano não será acatada. Não se consegue velejar contra o vento. Deve-se saber usar o vento para atingirmos nossos destinos, especialmente se existirem ventos contrários.

Otto Lara Rezende dizia que as leis no Brasil são como vacina, às vezes pegam, às vezes não. Como leis irrealistas não conseguem ser aplicadas, são leis que não pegam, o legislador, em geral com o apoio da opinião pública e da mídia, inventa outra lei. Essa nova lei é apresentada com a justificativa de cobrir os defeitos ou lacunas que não permitiam que a lei anterior fosse efetivamente aplicada. Com elevada probabilidade essa lei também não será obedecida. Logo outra lei será proposta para tapar os "buracos" e tornar mais rígida a legislação. E assim por diante, num processo que o acadêmico e historiador José Murilo de Carvalho denominou fúria legiferante. Das mais perversas consequências dessa dinâmica é a indicação para a sociedade de que não é preciso cumprir as leis, ao menos não todas as leis, alimentando, dessa forma, uma cultura de tolerância com as transgressões às normas legais ou éticas.

A legislação que deu origem ao processo de cassação dos vereadores, que também se aplica a outros casos que tiveram ampla repercussão nos meios de comunicação, se refere ao financiamento de campanhas eleitorais. Esse é um problema comum a todas as nações democráticas. Campanhas eleitorais são indispensáveis e quanto mais amplas, quanto mais dados forem oferecidos, mais informado estará o eleitor e mais consciente ele poderá votar.

Acontece que campanhas envolvem dispêndios financeiros, que algumas vezes são vultosos. Se não houver regras disciplinadoras, podem-se gerar desequilíbrios, favorecendo aqueles que puderem gastar mais, em geral mais ricos ou que representem grupos financeiramente mais poderosos. O perigo é que esses grupos, elegendo mais representantes, tenham um poder excessivo e desproporcional sobre as políticas públicas, em detrimento da maioria da população.

O objetivo da legislação brasileira sobre o financiamento de campanhas eleitorais é evitar ou, mais realisticamente, minimizar esse perigo. A lei não impede o financiamento privado, mas exige transparência sobre a origem dos recursos utilizados na campanha eleitoral. O fundamento dessa legislação é a crença de que a divulgação dos financiadores inibe a captura de políticas públicas por interesses privados. Assim, o que é frontalmente contrário à lei são os recursos não contabilizados. É o tristemente famoso caixa 2. O esforço dos fiscalizadores, o empenho da Justiça Eleitoral deveriam centrar-se na investigação e rigorosa punição dos financiamentos não declarados.

Infelizmente, não é isso que tem ocupado o noticiário sobre os trabalhos da Justiça Eleitoral. E não foi essa a razão para a decisão, que espero seja revertida em instância superior, de cassar o prefeito e vereadores paulistanos. Nesse episódio os financiamentos foram formalmente declarados pelos candidatos em suas prestações de contas à Justiça Eleitoral. As doações foram feitas por uma entidade e por empresas do ramo imobiliário e da construção civil. Dessa forma os interesses dos financiadores são sobejamente conhecidos e não foram omitidos. Pode-se inferir, assim, que o objetivo central da legislação foi alcançado. O motivo para a punição foram interpretações divergentes sobre detalhes da legislação, no caso, porcentuais da receita que entidades e empresas podem ou não doar. Detalhes desses frutos da citada fúria legiferante, que tudo quer controlar.

São tantas as restrições e obrigações, que são apresentadas de forma extremamente detalhada e, mesmo assim, não suficientemente claras, pois dão margem a diferentes interpretações, que acabam gerando uma enorme burocracia e imensas dificuldades para quem queira obedecer à lei e cumprir toda essa parafernália de exigências. Entretanto, não é isso que é passado à população. Lendo as seções de cartas dos leitores de diversas publicações, fica claro que o eleitorado julga que merecidamente foram punidos 24 vereadores corruptos. Provavelmente instâncias superiores vão revogar as cassações. Quando isso ocorrer, a percepção será de que mais uma vez a lei não foi respeitada e os corruptos não foram punidos. A cultura das transgressões acabaria sendo mais uma vez reforçada por essa indevida sensação de impunidade. Enquanto isso, o caixa 2 permanece incólume, chegando até a ser justificado sob a alegação de que essa é uma prática generalizada no Brasil.

André Franco Montoro Filho, economista, Ph.D. em Economia pela Universidade Yale, professor titular da FEA-USP, é presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) Site: www.etco.org.br