Título: Em Cuba, basta a suspeita
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/03/2010, Internacional, p. A12

Pela lei de "periculosidade", as autoridades prendem pessoas que não cometeram nenhum crime

Clique. E depois, silêncio. Era o som que eu temia em minhas ligações para Cuba. Quando eu reunia testemunhos de parentes de presos políticos, nunca sabia o significado da interrupção abrupta de um telefonema. Teriam os serviços de inteligência cubanos cortado a linha, ou era apenas a precariedade do sistema telefônico? Eu tornava a ligar imediatamente, com frequência recebendo um sinal de ocupado ou uma mensagem gravada dizendo que o número estava fora de serviço. Se descobria o que havia acontecido, era, em geral, dias ou semanas depois.

"Um vizinho apareceu para me vigiar, alguém suspeito." "Não sei, meu telefone parou de funcionar." Durante meses eu fiz - e perdi - essas ligações. Como Cuba não permite visitas de grupos de direitos humanos, somos obrigados a reunir informações por entrevistas telefônicas, relatórios de grupos locais e as raras cópias de sentenças de prisão contrabandeadas para fora por parentes visitantes.

Durante quase cinco décadas, Fidel Castro silenciou virtualmente todas as formas de dissidência em Cuba, trancafiando quem ousasse criticar seu governo. Depois que a saúde debilitada o obrigou a entregar o controle a seu irmão em 2006, muitos esperavam que a repressão abrandasse. Mas Raúl Castro permitiu que as levas de dissidentes detidos no tempo de Fidel permanecessem presas. Um deles, Orlando Zapata, morreu na semana retrasada após 85 dias de uma greve de fome que havia empreendido para protestar contra as condições em que era mantido.

Raúl Castro também encarcerou outras levas de presos políticos, como Ramón Velásquez, que terminou de cumprir uma pena de 3 anos em janeiro, mas foi detido novamente após a morte de Zapata. Falei pela primeira vez com a mulher de Ramón, Barbara, por telefone há um ano. Ela me contou como, em 10 de dezembro de 2006, eles haviam participado com sua filha de 18 anos, Rufina, de uma "marcha da dignidade" em Cuba para pedir respeito aos direitos humanos e liberdade para presos políticos.

Eles marcharam em silêncio, de leste para oeste, dormindo nas estradas ou nas casas de pessoas que as abrigavam. Ao longo do caminho, a polícia os deteve, eles foram atacados e carros chegaram a expulsá-los da estrada. Eles continuaram marchando. Em janeiro de 2007, a 300 quilômetros do ponto de partida, Ramón foi preso. Foi acusado de "periculosidade" e sentenciado a 3 anos de prisão.

Pela lei de "periculosidade" de Cuba, as autoridades podem prender pessoas que não cometeram nenhum crime sob a suspeita de que poderiam cometê-lo no futuro. Atividades "perigosas" incluem distribuir cópias da Declaração Universal dos Direitos Humanos, escrever artigos críticos ao governo e tentar formar um sindicato independente. Bárbara e eu nos falamos várias vezes nos meses seguintes sobre suas visitas a Ramón na prisão; sobre seu filho René, que cuidava dela; e sobre como Rufina fugiu para os EUA após a prisão do pai.

Minha organização pediu permissão para visitar Cuba, mas nunca recebeu uma resposta. Por fim, resolvemos ir de qualquer jeito. Para reduzir ao mínimo os riscos, não contamos a ninguém que estávamos indo. No meio do ano passado, um colega e eu alugamos um carro em Havana e guiamos para leste, realizando entrevistas ao longo do caminho.

Quando chegamos à casa de Velásquez, nos arredores de Las Tunas, somente René estava lá. Ele contou que Bárbara estava voltando de uma visita a Ramón na prisão. Nos sentamos numa pequena cozinha com chão de terra. René nos contou que não estivera na marcha e não se considerava um político. Mas depois da prisão do pai ele voltou para casa e descobriu a frase "Morte aos vermes da casa 58", o endereço de sua família, pichado no ponto de ônibus próximo. Uma semana depois, foi demitido de seu emprego no hospital. Membros do "comitê de defesa revolucionária" local - a associação de bairro conectada ao Partido Comunista - o insultaram na rua e tentaram provocá-lo para uma briga.

Um homem foi designado para vigiar Velásquez e à sua mãe. A namorada de René e os amigos pararam de falar com ele. "É como ter alguém com uma bota plantada bem no meio do meu peito e aplicando tanta pressão que eu mal consigo respirar", nos disse René.

Não demorou para Bárbara chegar de sua viagem de cinco horas. Exausta, ela falou durante alguns minutos e foi se deitar. Quando partimos, René insistiu para nos acompanhar até nosso carro. Seguimos pela rua, passando por vizinhos, que olhavam fixamente, e pelo homem na esquina, que saiu em nosso encalço alguns passos atrás. Quando chegamos ao carro, René pediu para passar uma mensagem a sua irmã, com quem ele não falava havia meses: "Digam-lhe que estamos bem - para não se preocupar." Olhei pelo retrovisor. René caminhava para casa, passando pelo olhar vigilante de seus vizinhos.

TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

*Nik Steinberg é pesquisador da divisão para as Américas da Human Rights Watch