Título: O lulismo e o ovo da serpente
Autor: Camargo, Aspásia
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2010, Espaço aberto, p. A2

Líder histórico do Partido dos Trabalhadores, Lula descolou-se de seupartido com o objetivo pragmático de garantir a vitória eleitoral em2002 e a governabilidade de sua gestão, em condomínio com amploespectro partidário. Essa metamorfose, coroada por intervençãomidiática, acabou transformando-o de líder descontente e severo nafigura do "Lulinha paz e amor".

O PT, do qual Lula mantevedistância protocolar durante seu governo - sem jamais abandoná-lo àprópria sorte -, foi criado em 1979 com fortes raízes sindicais, mastambém influenciado pelos radicais católicos, além de correntes deorigem marxista e guerrilheira. Essas três vertentes sofreram revezeshistóricos ao longo das décadas de 80 e 90, enquanto o PT seconsolidava como único partido de massas, e como oposição radical,atraindo segmentos importantes, como intelectuais, artistas, juristas,professores, inconformados com as desigualdades sociais do País e com oimobilismo conservador das elites brasileiras.

Administrar a"disfunção natural" dessas lideranças inadaptadas ao fluxo daglobalização e do capital, e que sempre permaneceram minoritárias noplano parlamentar e eleitoral, foi missão que apenas Lula poderiacumprir em sua consolidação no poder.

O que define o lulismo, emprimeiro lugar, é o pragmatismo desencarnado das bandeiras ideológicas,incompatíveis com a conquista e o exercício do poder. A despolitizaçãoque já o havia caracterizado como líder sindical reaparece naPresidência, protegida pelo selo de uma liderança de origem popular epelo amor visceral às classes populares, das quais é egresso. Afamiliaridade com que a elas se dirige, vocalizando suas necessidades evontades e zelando por lhes dar proteção e conforto, ampliando suarenda e abrindo-lhes novas oportunidades de consumo, é a marcaregistrada da era Lula - cujo paternalismo é temperado pela intimidadee pela identidade de quem conhece, em oposição ao patriarcalismo maiselitista e distante que foi a tônica da liderança populista de Vargas.

Parapoder influir acima das diferentes correntes ideológicas que atravessamas classes populares - segundo pesquisa de André Singer - foi precisoalimentar uma identidade direta, quase primitiva e despolitizada dasmassas em simbiose direta com a figura do líder.

O líder, porsua vez, representa essa massa, às vezes, de forma brincalhona epicaresca, saboreando boutades populares, provérbios, metáforas eparábolas que horrorizam as camadas superiores e contrariam os códigosde conduta da Presidência. Essa liderança de humor e alegria, com umaligeira pitada da clássica malandragem brasileira, contrasta com oprotótipo mais silencioso, pessimista e trágico do getulismo, quejamais deixou de ser uma expressão das elites. Lula, ao contrário,parece ser a encarnação mesma da identificação popular com umatrajetória de vida bem-sucedida, estimulada pelos altos níveis demobilidade social que marcaram o Brasil durante a maior parte do século20.

Essa é, aliás, a mensagem do filme Lula, o Filho do Brasil,no qual, muito mais que a origem miserável nordestina, o que ressalta éa rapidez da escalada ao patamar de torneiro mecânico e líder sindicalno coração da próspera capital paulista. Daí a presidente da República,o que ocorreu foi apenas "a perseverança", tão recomendada por sua mãe,dona Lindu, e uma continuação natural da vocação para a prosperidade,consubstanciada no milagre brasileiro.

Também a migração dasclasses D e E para um patamar acima da pobreza é fenômeno mundial queencontrou abrigo favorável por meio da liderança de Lula. Facilitar oendividamento para aquisição de bens de consumo, créditos consignadospara funcionários públicos e outras facilidades produziram frutospolíticos que poderão ser mais bem avaliados no futuro.

O quecaracterizou o lulismo foi a capacidade de manter em banho-maria opotencial de protesto de bandeiras anticapitalistas, que pareciam terruído com a queda do Muro de Berlim. Acendendo uma vela a Deus e outraao diabo, Lula ficou bem com o Fórum de Davos por ter acatado as regrasfinanceiras mundiais, mas não desagradou de todo ao Fórum SocialMundial, da mesma forma que conseguiu conduzir de forma pendular suasrelações com o populismo latino-americano, ora agradando a Hugo Chávez,ora se distanciando dele.

Nas relações internacionais,consagrou-se como um estilo de "diplomacia presidencial" nacionalista,com ampliação das áreas de influência, consolidando o Brasil como paísemergente e como membro protagônico do bloco dos gigantes continentais(Basic). O lulismo detém os louros de ter soterrado definitivamente acondição de subdesenvolvido e de ter viabilizado aformação/consolidação do G-20.

O contrapeso foram aventurasarriscadas e ideologicamente perigosas, como a abertura das relações decumplicidade com o Irã e com o continuísmo de Manuel Zelaya emHonduras, tão a gosto do bloco socialista. É uma no ferro, outra naferradura: namoro com Chávez e alianças com Nicolas Sarkozy e BarackObama. Hostilidades de Evo Morales, mas acordos com a Bolívia. Ora ocoração pende para o agrobusiness, ora para o MST. Cumprem-se as regrasdo jogo financeiro capitalista, mas questiona-se o princípio dapropriedade, dando cobertura às invasões de empresas produtivas. Tudoisso sem falar no episódio do decreto dos Direitos Humanos, quereacendeu o temor do imprevisto e a mudança das regras do jogo. Maisuma vez, Lula recuou sob pressão.

É a administração dasincertezas, que demonstra a fragilidade das instituições democráticas eo encanto pelas lideranças carismáticas diante de reivindicaçõespolíticas e sociais incontidas. Reflexos incontestáveis da inexorávelgestação do ovo da serpente - iniciada nos idos de 1989, quando daprimeira das três derrotas de Lula na corrida pelo Palácio do Planalto.

Aspásia Camargo, socióloga, é vereadora no Rio de Janeiro pelo Partido Verde (PV)