Título: Aos trancos e barrancos
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2010, Notas e informações, p. A3

Os iraquianos elegeram domingo o Parlamento que formará o próximo governo do país ? e, se tudo der certo, o primeiro a concluir o mandato sem a presença de tropas estrangeiras. Os Estados Unidos se comprometeram a retirar as suas forças de combate até o fim de agosto. Com isso, os efetivos serão reduzidos de 96 mil para 50 mil. "A não ser que aconteça algo catastrófico", como diz o comandante americano no Iraque, general Ray Odierno, o contingente que o presidente Barack Obama chama de "residual" voltará para casa ao longo de 2011. Essa perspectiva, que presume um país estabilizado, sob um governo funcional e capaz de responder ele próprio pela segurança da população, explica o tom laudatório dos comentários de Washington e da elite política iraquiana sobre o pleito.

Foi, de fato, uma eleição livre e competitiva, com mais de 6 mil candidatos disputando as 325 cadeiras do Parlamento por uma infinidade de partidos. O evento, no entanto, foi antecedido pelo expurgo de mais de 500 candidatos por suas presumíveis ligações com o destituído regime do ditador Saddam Hussein. Além disso, a compra de votos e a fraude eleitoral são endêmicas. O desencanto de muitos iraquianos com o sistema talvez explique, mais do que o medo dos atentados da Al-Qaeda ? que deixaram 38 mortos e dezenas de feridos em Bagdá no dia da votação ?, o comparecimento às urnas inferior ao da eleição nacional precedente, em 2005. Daquela vez, quando o poderio das milícias insurgentes de provocar carnificinas era substancialmente maior, 76% dos 19 milhões de eleitores ousaram desafiar o terror, indo votar. Agora, foram ao todo 62% ? e apenas 53% em Bagdá.

A torcida para fazer dessa eleição um acontecimento histórico mais sólido do que talvez tenha sido assumiu diversas formas. No domingo, o New York Times previu que o comparecimento superaria o de 2005. No dia seguinte, o embaixador americano Christopher Hill profetizou que o pleito marcará um novo começo para as relações dos Estados Unidos com o Iraque, "que esperamos se estenderá por décadas a fio". O certo seria dizer que as coisas poderiam ter sido piores, do ponto de vista da segurança ? sob responsabilidade iraquiana ? e da adesão do povo à democracia. Já não seria pouco, dado o retrospecto. Depois dos horrores dos anos Saddam, os iraquianos pagaram com 100 mil mortes e vasta ruína material a "mudança de regime" trazida pela invasão americana. Comparada a 2003, a situação no país decerto melhorou, mas, diante da monumental incompetência do governo, espanta que a maioria da população ainda acredite na força do voto.

"O principal problema do Iraque já não é a violência, mas a política", sustenta The Economist. De uma eleição para outra, a julgar por um levantamento da revista, nada mudou. As rivalidades entre os representantes dos três grandes grupos etnorreligiosos que formam o país ? xiitas, sunitas e curdos ? conduzem antes a atentados do que a acordos. A principal causa de morte em todo o país é o assassínio. O efeito disso para o funcionamento das instituições de governo e dos serviços públicos é o que se pode imaginar. Nada anda e tudo se compra nesse que é o quarto país mais corrupto do mundo, segundo a Transparência Internacional. Sete anos depois da invasão, apenas 25% dos iraquianos têm acesso regular à eletricidade, o desemprego e o subemprego são da ordem de 45%, o investimento estrangeiro fora do setor petróleo praticamente inexiste. Parte ponderável da ajuda americana de US$ 53 bilhões, a maior desde o Plano Marshall, escorre pelo ralo.

Ainda não está claro qual coligação eleitoral levou a melhor nas urnas ? a do primeiro-ministro Nuri Kamal al-Maliki ou a do ex-premiê Ayad Allawi. Ambas se definem como seculares, não sectárias e desejosas de unir o país. É improvável que uma ou outra tenha feito maioria folgada no Parlamento. Em consequência, desenha-se uma turbulenta temporada de conchavos e confrontos políticos até a formação do governo. Isso poderá durar meses, agravando a letargia crônica do Parlamento ? que até hoje nem sequer conseguiu votar uma Lei do Petróleo para o país ? e o torpor da burocracia. Ainda assim, aos trancos e barrancos, o Iraque se democratiza ? caso único entre os seus vizinhos mais próximos.