Título: Lei eleitoral e hipocrisia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2010, Notas e informações, p. A3

Ninguém precisa entender de teoria geral do direito para saber que, por paradoxal que pareça, quanto maior o número de leis e quanto mais encharcadas de detalhes todas elas, maiores também as chances de provocarem debates talmúdicos e interpretações bizantinas ? que acabam beneficiando, em boa parte dos casos, os interessados em encontrar nos seus desvãos o caminho para a burla. Às vezes, a aparente preocupação em cobrir todas as brechas que possam servir de meios para a negação, na prática, do espírito que motivou a legislação, esconde perversamente o intuito de neutralizá-la. As regras sob as quais devem se conduzir os protagonistas dos ciclos eleitorais são um exemplo vivo dessa deturpação.

A intenção que as inspira é evidentemente louvável. Busca instituir a igualdade de oportunidades entre as forças que competem pelo voto popular. Daí as restrições que visam, conforme o que já se tornou lugar-comum, a coibir a influência do poder econômico e dos governantes de turno na decisão final do eleitor. Mas, já não bastasse o absurdo de um sem-número de normas mudar de eleição para eleição, como se as campanhas tivessem de ser planejadas sob o princípio da incerteza, tornou-se rotineira a queda de braço entre o Legislativo e o Judiciário a propósito do que deve ser permitido e proibido. Agora mesmo o PDT tenta derrubar na Suprema Corte nada menos de 12 pontos da minirreforma eleitoral aprovada no ano passado.

Pior é que os não raros defeitos e omissões na ordenação legal das campanhas resultam menos da distração dos seus autores ? o corpo político nacional ? do que do intento de usá-los em seu favor. As oposições fazem expressão corporal de protestar contra o "uso da máquina" por parte dos governos, mas não são menos responsáveis do que eles pelas facilidades embutidas na lei cujas transgressões denunciam. O resultado é desmoralizante.

Há uma eternidade o presidente Lula se vale dos recursos de poder do seu cargo para promover a candidatura Dilma Rousseff. A oposição chia, abre-se uma discussão inócua sobre o que vem a ser "campanha antecipada" ? e o jogo segue sob o império da hipocrisia.

Dilma é candidata desde que aceitou a decisão do seu patrono, sabedores, ambos, de que o PT faria o que ele determinasse. Mas, enquanto o seu nome não for sacramentado em convenção (de 10 a 30 de junho) e registrado (até 5 de julho), ela é "pré-candidata" ? a jabuticaba brasileira para o léxico dos sistemas democráticos. Nesse período, pouco importa que esteja no governo ou fora dele, como terá de estar a partir de 3 de abril, poderá participar de todos os eventos, como inaugurações de obras e outras cerimônias oficiais, em que o presidente Lula julgar a sua presença conveniente, desde que ele não peça votos para ela e ela cale. É o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU).

Baseia-se na doutrina de que tudo é permitido se não for expressamente proibido ? e a lei é omissa sobre o que pode fazer um agente público entre a desincompatibilização e o registro de sua candidatura. Depois, entende a AGU, nada impede que o presidente suba aos palanques de sua escolhida ? desde que após o expediente e com as despesas pagas pelo partido. A menos que emende um comício a um ato de governo. "Não há impedimento para que fora do espaço em que exerce a Presidência", diz o titular da AGU, Luís Inácio Adams, "ele participe de comícios." Se assim é, está armada a arena para uma controvérsia preciosa sobre os limites desse espaço.

Um outro presidente, que não considerasse eleger o sucessor "a coisa mais importante" do seu governo, como confessou Lula no recente congresso petista, talvez pudesse pensar que a moralidade política deva prevalecer sobre a letra ou as omissões da lei. Mas com ele é diferente. Só não carregará a "pré-candidata" para cima e para baixo ? e só não irá a todos os comícios da afinal candidata ? se achar que isso poderá ser contraproducente para a imagem de Dilma como portadora de luz própria. Que sentido tem, em suma, uma legislação assim complacente?