Título: Na trilha dos isolados
Autor: Almeida, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2010, Nacional, p. A16

Expedição da Fundação Nacional do Índio (Funai) passa dois meses nosudoeste do Amazonas em busca de vestígios de índios isolados,não-contactados Às16h30 do dia 1º de dezembro de 2009, um barco de madeira da Funai com13 pessoas a bordo começou a escorrer lentamente pelo Rio Solimões. Omotor roncava forte, constante, e uma leve brisa enfim aliviou o solque massacrava a tripulação no porto de Tabatinga, extremo oeste doAmazonas.

O que era projeto, mapa, planilha e expectativa do indigenista RieliFranciscato, chefe da expedição, começava a virar realidade. Cincoíndios e cinco mateiros, acompanhados pela reportagem do Estado,estavam sob seu comando na mais ambiciosa jornada da Frente de ProteçãoEtnoambiental Vale do Javari dos últimos oito anos.

Em três grandes entradas na mata, o grupo de expedicionáriostentaria encontrar indícios da existência de grupos indígenasdesconhecidos, não-contactados. Prazo de retorno imprevisível. Doismeses de viagem pelo menos.

O objetivo era verificar três hipóteses. A primeira, sobre a supostaação de indígenas na formação de uma clareira em formato de perfeitacircunferência, observada em sobrevoo realizado pela Funai meses antes.A segunda, avaliar a veracidade de boatos que ligariam doisassassinatos de não-índios, parentes de madeireiros, por "índiosbravos".

E a última, uma suposta aparição na aldeia Janela, da etniakatukina, no Rio Biá, de um índio nu, pintado de urucum e com cabeloslongos. Ele teria tentado raptar uma jovem, o que criou um alvoroçomítico entre os katukinas.

Jornada. Quando o barco partiu naquela tarde de dezembro, tudoparecia simples. Navegar pelos grandes rios, subir igarapés em velozesvoadeiras e caminhar pela floresta com olhar atento para vestígiosdeixados por índios não-contactados. Para vestir, roupas leves eresistentes. Para comer, o básico arroz, farinha, feijão, carne seca emacarrão. Para dormir, rede, mosquiteiro e lona.

No entanto, os imprevistos de uma expedição de grande porte acabamestressando o não-índio, cansando o índio e deixando o indigenista coma difícil tarefa de manter os ânimos em sintonia com o trabalho duro.Especialmente porque, em duas entradas, os indícios de existência dosíndios não-contactados não se comprovaram.

Ao todo, a jornada teve 63 dias, alguns de total monotonia, outrosde cansaço extremo, e raros momentos de grandes descobertas. A paisagemamazônica, imagina-se, tem surpresas a cada instante, o que não éverdade. É raro encontrar animais.

Além disso, houve grande apreensão no fim de dezembro, quandoocorreu um encontro direto e inesperado com garimpeiros encapuzados,assustados com a presença do barco oficial no Rio Boia. Enquanto aequipe navegava a cerca de 10 km/h, dois deles deixaram o trabalho nabalsa de extração de ouro e rasgaram o rio em uma voadeira semidentificação e fizeram gestos ameaçadores para a equipe.

"Eles não são loucos de fazer alguma coisa", acalmava Franciscato.Não fizeram, mas a sensação de vulnerabilidade tomou conta de todos. Sóesvaneceu quando ficou comprovado que eles haviam deixado a área deexploração um mês depois, já em janeiro de 2010, quando o barcoretornava da terceira fase da expedição.

Fôlego. Por outro lado, quando foram encontrados vestígios dosnão-contactados, logo antes do Natal passado, a equipe ganhou fôlegonecessário. A área, que nunca havia sido expedicionada, era deperambulação de um grupo que teria partido de dentro da Terra IndígenaVale do Javari para caçar. Nada que confirmasse, porém, a ocupação daárea. Não havia tapiris - acampamentos rudimentares -, ou sinais de usoda terra.

"Trabalhar com índio isolado é assim mesmo", dizia em seu parcoportuguês o índio Txami Matis, mais experiente da missão. "É assimmesmo", para ele, significa superar a impaciência e o desconforto porum bem maior, que nem sempre ocorre - a demarcação da terra e aproteção do não-contactado.

No dia 1.º de fevereiro, mais de 3 mil quilômetros percorridosdepois, o barco da Funai encostou novamente em Tabatinga. A equipe, quehavia operado voadeiras, motosserras e caminhado cerca de 150quilômetros em áreas encharcadas, cruzando igarapés e igapós, nãoescondia a alegria de voltar para a cidade. Era um domingo de sol, otechno brega e a cumbia colombiana rolavam soltos nos bares deTabatinga.

O único a não querer descer do barco da Funai foi o indigenistaRieli Franciscato. "Tenho nada pra fazer na cidade não", avisou. "Senão quer apanhar, não sai de casa", brincava o mateiro e índio ticunaMisael.