Título: Macaco, mutum e matrinxã na panela
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2010, Nacional, p. A17

Obaque oco do rifle calibre .20 ecoou na mata espalhando chumbo. Oestampido do rifle .22 teve direção certa na penumbra cerrada. Caírammutum, jacu, macaco-aranha, macaco-barrigudo, macaco-guariba. Tombaramveado-roxo, paca, cotia e anta.

A expedição caçou praticamente todos os dias em que esteve na selva.Proteína para misturar com a farinha, o arroz, o feijão e o macarrão.

Quando não havia caça, o jeito era a pesca. Surubins, pacus,piranhas, piaus, mandis e matrinxãs, que por vezes não vieram osuficiente, deixando barriga roncar e o ânimo de índios e mateiros láembaixo.

Alimentar-se na selva é a tarefa mais complicada - e crucial - daexpedição. Índios membros da equipe rejeitam o alimentoindustrializado, preferem a carne de macaco. Arrancam o "casaco", comodizem, tratam o "bucho", desmembram e atiram na panela.

Braços, pernas, costelas e cabeça vão cozidos na água do igarapémais próximo, com sal, alho e cebola. No espeto que faísca na brasa,fígado e coração, partes nobres.

No prato, os miúdos vão no arroz e farinha, viram caldo proteico."Macaco não é minha carne preferida, mas se é o que tem", resignava-seo indigenista Rieli Franciscato.

Da cabeça do macaco, os índios roem os músculos da face. Em seguidaquebram o maxilar em busca da língua. Trincam o crânio, retiram océrebro cozido e misturam com a farinha para comer.

Com todos os animais era assim. Nenhuma parte foi desprezada. "Épela subsistência deles na mata, é cultural, é assim", explicavaFranciscato.

Peso insuportável. A expedição sobreviveu da mata em quase todos osdias, porque é impossível carregar alimento nas pesadas caminhadas. Asmochilas tinham pelo menos 30 quilos cada, só em roupas, equipamentos erancho.

Havia, além de rádio comunicador, aparelhos de localização viasatélite e baterias, arroz, macarrão, feijão, sal, sardinhas e, claro,as panelas, pratos e talheres. Mais 10 quilos de carne tornariam aempreitada impossível.

Pela importância que tem para a expedição, caçar bem é símbolo destatus. O mateiro e índio ticuna Misael, sempre com rifle à mão, traziao jantar orgulhoso do que havia conseguido. "Eu gosto de mato, eu caço,eu gosto mesmo", dizia.

Misael e os índios Wilson Kanamari e Tapumpa Marubo realizavam umadisputa nada silenciosa. Desde o momento que "entralhavam asmalhadeiras" - o que pode ser traduzido como costurar suas redes depesca -, até recolher a quantidade de peixes enredados e tratá-los paraa janta.

Misael, sempre provocador e divertido, atiçava os ânimos, depois depuxar um matrinxã após o outro em cinco minutos de pesca com linha demão, na cabeceira do Rio Boia. "Quem não sabe pescar só atrapalha",gargalhava.

Já o mateiro matis Txami, menos adepto da caça com rifles e da pescacom redes e anzóis, carregava no pescoço um colar feito com dentes de32 macacos, dizia ele, abatidos com zarabatana embebida em venenonatural. Macaco-aranha, guariba ou barrigudo, tanto faz. Gabava-se dofeito. E vendia o item artesanal por R$ 100.