Título: 63 dias entre rios, igarapés e vestígios
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2010, Nacional, p. A17

Equipe desafiou a floresta, investigou boatos e viu sinais deixados por índios não-contactados

Só12 dias depois de sair de Tabatinga é que o barco da expedição, Kukahã,conseguiu contornar a Terra Indígena Vale do Javari, deixando para trásos rios Solimões e Jutaí. O longo trajeto até a boca do Rio Boia, umafluente menor, de água preta, serviu para mostrar que o tempo naAmazônia tem outra dimensão.

Horas, minutos e segundos saem de cena. Dias, semanas e mesesaparecem como referencial. O tempo se arrasta para quem não estáacostumado e enclausurado em um barco de 30 m² com 13 pessoas. Apaisagem homogênea - marrom na água, verde na margem, azul no céu -pouco ajuda.

No trajeto, enquanto a primeira entrada se aproximava, o indigenistaRieli Franciscato distribuía facões e equipamentos de sobrevivência. Osrifles de caça foram revisados. A ansiedade aumentava.

Na véspera, Franciscato fez a divisão do "rancho" que seria levadoaté o acampamento-base na mata. Foram embarcados em dois barcos dealumínio uma motosserra e um gerador de luz, farinha, arroz, sardinhas,pacotes de bolacha de água e sal e suco artificial. Soro antiofídico etestes de malária.

Ao meio-dia do dia 12 de dezembro, nove membros da expediçãopartiram em direção à clareira supostamente feita por índiosnão-contactados. Igarapé adentro, com vento no rosto, a palmeira buritise espraiava sobre a água como um guarda-chuva verde. A broméliavermelha contrastava, a 20 metros de altura. O sol explodia no céuazul.

Ao cair da tarde, Franciscato ordenou que o tilintar dos facões semultiplicassem na mata. A floresta na beira abria espaço para oacampamento.

Após a noite sob chuva torrencial, o igarapé estava cada vez maisbloqueado por árvores tombadas. Foram seis horas de acelera e para atéchegar ao ponto de partida da entrada na mata, ainda a 15 quilômetrosda clareira.

Era o começo de uma forte caminhada em terreno acidentado. Nessepedaço, a Amazônia é de morros, com subidas escorregadias. E a proteínanecessária veio da carne de macaco-aranha, abatido pelo mateiro e índioticuna Misael.

Quando a clareira estava próxima, a menos de 5 quilômetros, o climade decepção tomou conta. Não havia vestígios indígenas. Franciscatoficou 15 minutos em silêncio. Acendeu um longo cigarro enrolado comfolha de caderno. "É, achei que a gente já estaria tomando chicha(bebida de frutas fermentadas) com os "parentes"", desabafou, brincando.

A clareira não passava de uma área em que árvores foram derrubadaspor uma tempestade. "Bora voltar então", ordenou Franciscato. Aindafaltavam duas entradas para cumprir a missão.

Segunda entrada. Dia 25 de dezembro de 2009,parado na beira do RioBoia, rifle nas costas e suando em bicas, o mateiro e índio kanamariWilson tirou um galho do bolso e mostrou para a equipe. "Ó a quebrada!Eu com medo de parente bravo!" Franciscato, mesmo avesso à "bagunça"das festas de fim de ano, não resistiu. "É nosso presente de Natal."

O galho que Wilson encontrou quebrado é o vestígio que a Frenteprocurava, 400 quilômetros ao sul da clareira. Após o desalento daprimeira fase, era o grande sinal de índios não-contactados daexpedição.

A nova incursão começara no dia 21 de dezembro para confirmarrelatos de ribeirinhos: a mulher de um madeireiro e a filha de outroteriam sido mortas por "índios bravos" nos últimos cinco anos.

Galhos quebrados, porém, não eram suficientes para afirmar queíndios não-contactados ocupam a área. E assim se desenhou a missão maislonga da expedição. Foram sete dias no barco de alumínio, a motosserragritava nos igarapés para poder abrir caminho. Mas não avançava cincoquilômetros por dia.

Quando finalmente a Frente chegou ao ponto de início da caminhada,após topar com picadas de cobras e escorpiões, já era 30 de dezembro,quase 2010. O trajeto a pé, de 50 quilômetros em linha reta, passou poráreas encharcadas e travessias perigosas de igarapés. Mas os vestígiosdesapareceram.

"Fomos longe mesmo", suspirava o mateiro e índio marubo Tapumpa,após retornar ao acampamento-base no dia 6 de janeiro. "Não encontramosnada", dizia um cansado Franciscato.

O caso dos assassinatos restou inconclusivo. Ficou claro, noentanto, que índios não-contactados de um grupo conhecido da TerraIndígena Vale do Javari estão fora da área demarcada, desprotegidos, erequerem monitoramento, culpa do avanço do garimpo na região.

Rapto de mulher. Dia 19 de janeiro deste ano, Franciscato decidiuinvestigar o suposto rapto de uma mulher da etnia katukina no Rio Biá,afluente do Rio Jutaí. Para sustentar a tese, o indigenista entrevistoukatukinas de três aldeias - Boca do Biá, Janela e Bacuri.

Foram duas as palavras-chave: quebrada e varadouro. O índio katukinaCarnaval disse que sabia onde estavam os vestígios e acompanhou aequipe na entrada, por cinco dias.

No entanto, ao final do trajeto de 30 quilômetros a pé, ficou claroque não passava de invenção. Os katukinas temem o "índio bravo" e umaaparição justificaria disputas por mulheres e por território, sem gerarconflito imediato entre os membros da etnia.

Ao final da expedição, índios das aldeias Janela e Bacuri sedivertiram ao saber que a história tinha ultrapassado os limites dasaldeias e chegado a Manaus, Brasília e São Paulo. Hora da expediçãoretornar a Tabatinga, com a certeza do dever cumprido: checar.