Título: Você é um preso político cubano
Autor: Escobar, Reinaldo
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/03/2010, Internacional, p. A20/21

Muitoslivros podem ser escritos sobre o tema das pessoas que em Cubaestiveram ou permanecem na prisão por motivos políticos. São muitos ospontos de vista e também são muitas as etapas do fenômeno, mas o termo"preso por motivos políticos" é mais do que uma definição jurídica ouuma construção gramatical.

Trata-se da situação na qual se encontram as pessoas que perderamsua liberdade porque seus propósitos políticos são considerados delitospelas autoridades, independentemente dos métodos empregados paracolocá-los em prática. Poderíamos dizer, por abstração, que umextremista que tenta impor seus ideais por meio da violência é mandadoà prisão por praticar atos violentos contra as pessoas, classificadocomo criminoso comum ou terrorista. Mas, se ele se limita a recolherassinaturas para enviar uma proposta democrática ao Parlamento e éencarcerado por isso, então ele é, sob todos os pontos de vista, umpreso político. O aspecto complicado da questão é o fato de osacontecimentos transcorrerem num contexto histórico que transcende asestreitas generalidades dos dicionários.

Fidel Castro, que no verão de 1953 organizou uma força de mais de100 homens armados para o ataque a uma fortaleza militar em Santiago deCuba, foi considerado um preso político, e tratado como tal, pelobrutal regime que ele pretendia derrubar pela força. O implacáveltirano Fulgencio Batista permitiu que o jovem advogado recebessejornalistas em sua cela. Em sua infinita crueldade, o ditador impediuque o líder revolucionário cumprisse a pena de 15 anos a que foracondenado, libertando-o com seus companheiros após apenas 22 meses naprisão modelo de Isla de Pinos.

Ser livre era a mais preciosa conquista proclamada por aquelarevolução, que triunfou após um temerário desembarque e dois anos deluta de guerrilha, apoiada por atentados e sabotagens. A Liberdade,representada ao estilo de Delacroix, saindo exultante de barricadas como belo peito descoberto, fez com que de início ninguém se acautelassediante da presença de sua severa companheira: a Justiça, que nãodemorou em roubar-lhe o protagonismo, primeiro nos tribunaisrevolucionários, levando ao paredão policiais e torturadores que nãoconseguiram escapar e decretando o confisco de propriedades irregulares.

Logo os cubanos descobriram que aquela moça com o seio de fora nãoera bem-vinda na cerimônia de casamento entre o poder revolucionário ea outra dama, a inflexível que tinha lhe tomado o lugar e desde entãopassaria a ser chamada de "justiça social". Em nome dela foramproclamadas leis de nacionalização que não se conformaram em intervirnas 382 grandes empresas estrangeiras, mas terminaram por despojar osengraxates de rua de suas ferramentas.

Como não havia dúvida de que os interesses americanos na ilha tinhamsido afetados, qualquer arroubo de rebeldia, inconformismo ouquestionamento passou a ser considerado ato contrarrevolucionário aserviço do imperialismo ianque. Nada disso era encarado como crimepolítico, mas como traição à pátria. Seus autores só poderiam serencarados com epítetos desprezíveis: os que fugiram para as montanhasforam chamados de bandidos; os que organizaram expedições foramtachados de invasores; os que se limitaram a organizar partidos, gruposde defesa dos direitos humanos, agências de imprensa ou bibliotecasindependentes foram chamados de mercenários. Dessa coleção de inimigos,alguns foram executados, outros cumpriram ou cumprem penas prolongadase o restante vive na angústia de ter um pé na rua e o outro no cárcere.

Há presos políticos em Cuba? O Comitê de Direitos Humanos contava201 nomes na época conhecida como primavera negra de 2003. Naquelaocasião, 75 pessoas foram condenadas a penas de 15 a 28 anos. Dosmembros desse grupo, 56 permanecem presos.

Mas as instâncias do poder em Cuba têm outra versão dos fatos. Umexemplo é a Declaração da Assembleia Nacional do Poder Popular de 11 deMarço, que respondeu à resolução do Parlamento Europeu que condena ogoverno cubano e pede "a libertação imediata e incondicional de todosos presos políticos e de consciência". Tal documento foi emitido após amorte do preso político Orlando Zapata Tamayo, em decorrência de umagreve de fome, e expressa preocupação diante do estado do jornalista epsicólogo Guillermo Fariñas, que entrou em greve de fome até que sejamlibertados todos os presos políticos que exigem atenção médica.

A primeira coisa que salta aos olhos é a interpretação segundo aqual uma condenação ao governo equivale a um ataque contra o povocubano. A segunda é o sofisma que afirma que parlamentares da UniãoEuropeia "são desprovidos de moral para julgar um povo alvo de umbrutal bloqueio". Quem teria moral para reclamar do governo cubano? Poracaso Mobutu, ou Kim Jong-il, ou talvez Hugo Chávez? Estou convencidode que o serviço secreto cubano possui informações sujas a respeito dequalquer um que se atreva a denunciar os atropelos do governo cubanocontra o povo, ou ao menos contra uma parte dele. Qual teria sido ofato podre do passado de Lula que lhe seria esfregado na cara se opresidente brasileiro tivesse ousado sugerir a Raúl Castro, mesmo numsussurro, que fosse libertado apenas um par de presos moribundos?

Pois, caso não saibam, em Cuba a discrepância política foicriminalizada e é castigada de muitas formas. Seja mandando o opositorà prisão ou impedindo que viaje para fora do país para receber umprêmio, como ocorreu tantas vezes com as Damas de Branco e com ablogueira Yoani Sánchez, a quem foi negada uma viagem ao Brasil porocasião do lançamento de seu livro. Pensar diferente pode custar aalguém a admissão num centro de trabalho.

Assim sendo, somos todos presos políticos neste grande cárcere de111 mil km². Mas isso não é tudo. Serão penalizados também os de foraque levantarem a voz, porque na lógica castrista o povo cubano é umúnico homem decidido a morrer antes de renunciar ao seu sistema, e osque pensam diferentemente só podem ser agentes do imperialismo.

Não há presos políticos em Cuba? Você é um deles, mesmo que não saiba disso.

Jornalista cubano, é marido da blogueira Yoani Sánchez