Título: Google deixa a China
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/03/2010, Notas e informações, p. A3
A momentosa decisão do Google, o maior provedor de informação do mundo, de transferir o seu site chinês de Xangai para a "região administrativa especial" de Hong Kong, onde não precisaria continuar se autocensurando, não mudou as coisas para os cerca de 400 milhões de internautas da República Popular. Desde terça-feira, o próprio governo passou a filtrar, da galáxia de páginas oferecidas por esse fantástico engenho, os resultados das buscas que envolvam assuntos "sensíveis" para Pequim, como Tibete, direitos humanos, o massacre da Praça da Paz Celestial? Ao mesmo tempo, as autoridades adotaram posições contraditórias diante da iniciativa do Google.
De um lado, trataram de reduzi-la a uma questão apenas comercial, que, assegurou o porta-voz da chancelaria chinesa, não afetará as relações do país com os Estados Unidos, a menos que "alguém politize a questão". Mas, de outro lado, foi exatamente o que fez o Diário do Povo, o principal jornal do Partido Comunista, ao acusar o Google, em editorial de primeira página, de cumplicidade com os serviços americanos de espionagem. Além disso, o texto equipara o fechamento do site a "ensaio de guerra", como parte de suposta tentativa dos Estados Unidos de "transformar a internet em campo de batalha". Qualquer que seja a explicação para a incoerência chinesa, o fato é que comércio e política são dimensões ora contraditórias, ora complementares, mas sempre indissociáveis do universo da internet. Nos anos recentes, megamultinacionais e governos de todos os feitios vêm desenvolvendo interesses cada vez maiores e mais intrincados na fabulosa esfera da comunicação online. Para as primeiras, o céu é o limite. O faturamento anual do Google, por exemplo, é de US$ 24 bilhões (dos quais apenas US$ 500 milhões, aproximadamente, made in China). O seu valor de mercado está em US$ 173 bilhões e seus negócios se diversificam sem cessar.
Para um país com vocação para superpotência, como a China, a expansão do setor de ponta das telecomunicações (internet e telefonia móvel entrelaçados) é um imperativo estratégico; e o controle dos conteúdos e do acesso a eles na web é condição necessária para a estabilidade do sistema que combina ditadura comunista e economia de mercado. A virtual inexistência das liberdades fundamentais no país nunca afugentou os investidores, desde as reformas modernizadoras dos anos 1980. "Em matéria de valores", ataca o Diário do Povo, "o Google não é nenhuma virgem." De fato, não é. A empresa começou a funcionar na China em 2006 e aceitou fazer autocensura quando lhe foi ordenado.
Assim também os seus congêneres, como o Bing, o motor de busca em chinês da Microsoft de Bill Gates. Ainda há pouco, ele disse, numa entrevista: "Você precisa decidir se quer, ou não, obedecer às leis dos países onde opera. Se não quiser, talvez não consiga fazer negócios ali." A atitude complacente do Google ? segundo a qual melhor a censura do que informação nenhuma ? começou a mudar em janeiro último. A companhia acusou Pequim de mandar invadir o site para roubar códigos de computação protegidos por direitos autorais e copiar as contas de e-mail de críticos do regime. O Google protestou em alto e bom som, mas levou 3 meses para deixar o país.
Pode-se dizer que saiu a contragosto. Mais ainda do que o risco de entregar o mercado para o rival local Baidu, a decisão pôs em xeque a sua milionária parceria com a China Mobile, líder do setor de telefonia celular do país. Defensores da democracia em toda parte saudaram a saída. Analistas, nem tanto. "Não entendo como o Google pode ter achado que dobraria os chineses em uma questão de censura interna", surpreendeu-se, por exemplo, o ex-embaixador americano em Pequim Stapleton Roy. A empresa, por sua vez, se guarda de pôr lenha na fogueira. O seu fundador, Sergey Brin, não excluiu "voltar a servir a China continental".
Mas o desfecho pode ser uma vitória de Pirro para o regime. Em Washington, o episódio não ficará por isso mesmo. E outras gigantes da internet poderão pensar duas vezes antes de levar as suas inovações à China.