Título: A defesa do indefensável
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/04/2010, Internacional, p. A10

Quatro décadas depois de um dos mais duros discursos de Martin Luther King contra a Guerra do Vietnã, EUA sacrificam soldados para manter o corrupto regime do Afeganistão

O homem corpulento parecia relutar. Ao descer do carro em Manhattan, ele sabia que iria desencadear a maior tempestade, sabia que havia pessoas poderosas não reagiriam bem ao que tinha a dizer. "Vim a esta magnífica casa de adoração hoje", disse o reverendo Martin Luther King Jr., "porque minha consciência não me deixa outra escolha".

Era a tarde do dia 4 de abril de 1967, há 43 anos. No seu discurso, King disse à multidão de mais de 3 mil pessoas reunidas na Riverside Church que o silêncio diante do horror que estava ocorrendo no Vietnã equivaleria a uma "traição". Ele falou da carnificina na região da guerra e no número de americanos mortos. O discurso me vem à mente neste momento por duas razões.

A primeira é um documentário de Tavis Smiley que está sendo exibido pela PBS, a TV pública dos EUA, e analisa a controvérsia criada pela acusação lançada por King sobre a "loucura do Vietnã". A segunda são as recentes notícias que mostram com uma evidência cada vez maior que nós também fomos apanhados numa insensata e trágica aventura no Afeganistão.

King falou que, no Vietnã, os Estados Unidos haviam aumentado a número de soldados "para dar apoio a governos particularmente corruptos, ineptos, sem respaldo popular".

Na realidade, é estranho ler estas palavras mais de 40 anos depois, quando nós também estamos aumentando o número de tropas no Afeganistão para combater em apoio a Hamid Karzai, que continua no poder depois de uma eleição que, como todo mundo sabe, foi fraudada, e cujo governo é um dos mais corruptos e ineptos do planeta.

Se Karzai sente-se agradecido por esse apoio, tem uma maneira estranha de mostrá-lo. Ele vem ignorando os apelos do presidente americano, Barack Obama, e de outros para que adote medidas concretas a fim de conter a incontrolável corrupção.

Seu irmão, Ahmed Wali Karzai, que domina o sul do Afeganistão, acreditam as autoridades americanas, dedica-se às atividades mais nefastas, incluindo lavagem de dinheiro e envolvimento no florescente comércio de ópio.

O próprio Hamid Karzai insultou propositalmente os EUA ao convidar Mahmoud Ahmadinejad, do Irã, para uma visita ao palácio presidencial em Cabul, onde o líder iraniano sem perda de tempo proferiu um violento discurso contra os EUA. Como Dexter Filkins e Mark Landler noticiaram no New York Times na semana passada: "Enquanto Obama envia dezenas de milhares de soldados americanos para aquele país para defender o governo de Karzai, este agora afirma repetidas vezes que seus interesses e os dos EUA já não coincidem."

É para isto que os soldados americanos estão morrendo no Afeganistão? Pode-se imaginar abrir mão da própria vida, ou da vida dos próprios filhos, para essa gente? Em seu discurso, King falou dos prejuízos que a Guerra do Vietnã estava dando à guerra contra a pobreza nos EUA e dos danos a outras importantes atividades nacionais. O que ele queria dos EUA não era uma guerra no exterior, mas um renovado compromisso com a justiça econômica e social em seu país.

Como afirmou: "Uma nação que continua ano após ano gastando mais recursos na defesa militar do que em programas de melhoria social está se aproximando da morte espiritual."

O discurso desencadeou um verdadeiro furacão de críticas. A própria NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) lamentou que King continuasse insistindo no que considerava sua área de competência, os direitos humanos. The New York Times intitulou o seu editorial sobre o discurso "O erro do dr. King".

Em seu documentário, Smiley observou que "o relacionamento que já estava já tenso entre o presidente Lyndon Johnson e o dr. King rompeu-se definitivamente". E as doações à Conferência da Liderança Cristã do Sul, de King, "começaram a minguar".

Portanto, King precisou de grande coragem para falar como fez.

Sua posição audaciosa parece mais admirável ainda no clima de hoje, quando a coragem moral entre as personalidades mais destacadas ? a coragem que traz em si um risco real ? parece ter desaparecido.

Mais de 4 mil americanos morreram no Iraque e mais de mil no Afeganistão, onde o governo Obama optou pela escalada em lugar de dar início a uma cuidadosa retirada. As duas guerras, como o Prêmio Nobel Joseph Stiglitz e sua colega Linda Bilmes ressaltaram, custarão aos americanos mais de US$ 3 trilhões.

E no entanto, as vozes que querem a paz, que desejam o fim da "insensatez", que querem a construção de uma nação tão desesperadamente necessária nos Estados Unidos, são na realidade tênues demais.

King seria assassinado exatamente um ano (quase na mesma hora) depois de seu admirável discurso na Riverside Church. O mesmo destino terrível aguarda alguns dos soldados americanos, na maioria muito jovens, que continuamos enviando para o atoleiro do Afeganistão. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA