Título: A vaca de leite
Autor: Werneck, Rogério L. Furquim
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/04/2010, Economia, p. B2

Em meados do século 17, encantado com a farta receita que a coroa portuguesa vinha extraindo do Brasil, d. João IV se referia à colônia como "a minha vaca de leite". Esse doce enlevo do monarca lusitano com a bonança fiscal do ciclo do açúcar veio à mente na semana passada, quando o presidente Lula voltou a se queixar da falta que ainda sente dos copiosos recursos da CPMF, extinta no final de 2007, após memorável batalha no Congresso. Lula não se conforma com a perda da inesquecível vaca de leite. E sonha com a ideia de ressuscitá-la.

Basta uma conta fácil para compreender o fascínio de Lula pela CPMF. Tratava-se de um tributo que, com alíquota de "apenas" 0,38%, gerava arrecadação de R$ 38 bilhões em 2007. Dividindo-se a arrecadação pela alíquota, pode-se estimar a fabulosa base fiscal sobre a qual a contribuição incidia. Nada menos do que R$ 10 trilhões. Valor cerca de quatro vezes maior do que o PIB de 2007.

Qual era a mágica? Em contraste com formas defensáveis de tributação que incidem sobre a renda pessoal, lucros, valor adicionado, folha de pagamento e riqueza, a CPMF, pela sua incidência em cascata, acabava recaindo sobre uma base fiscal ilusória, sem contrapartida econômica real. Era o sonho da tributação populista: uma alíquota "diminuta" sobre uma base fiscal gigantesca e artificial. Um arranjo que levava o ministro Guido Mantega a alegar que "as pessoas nem sabem quanto pagam de CPMF; não pesa no bolso". E que deixava o governo alarmado com a perspectiva de perder essa tributação "sem custo" e ter de levantar R$ 38 bilhões de forma mais civilizada.

A batalha da CPMF marcou o melhor momento do Congresso no segundo mandato de Lula. Ainda não se tem perspectiva histórica adequada para que o episódio possa ser entendido com a profundidade que merece. Mas não há dúvida de que a mudança do discurso do governo, a partir da queda do ministro Antônio Palocci, em 2006, ajudou a acirrar a resistência do Congresso à aprovação da emenda constitucional que prorrogaria a vigência da CPMF. Além de abandonar completamente qualquer intenção de conter a expansão desenfreada de gastos públicos, o governo passou a comemorar as infindáveis possibilidades de ampliação de seu dispêndio, na esteira de um aumento sem fim da carga tributária. Nesse clima, ganhou força entre a oposição, no Senado, a determinação de aproveitar a oportunidade da votação da emenda da CPMF para negar ao Executivo acesso tão farto a recursos fiscais. O Planalto apostou que a resistência do Senado não se sustentaria. E acabou sofrendo contundente derrota.

O presidente Lula até hoje não engoliu tal revés. E, sempre que pode, como na semana passada, tenta associar as deficiências dos programas do governo na área da saúde à perda da CPMF. A verdade, contudo, é que a extinção da CPMF não impediu que, em 2008, a arrecadação federal continuasse a crescer, em termos reais, o dobro da taxa de crescimento do PIB. O desempenho mais fraco da receita em 2009 decorreu da crise, de exonerações fiscais e da queda momentânea de eficiência da máquina arrecadadora. Mas nada disso impediu que o gasto primário federal tivesse uma expansão da ordem de 17% em 2009. Se a saúde tem sido menos aquinhoada do que deveria é porque o governo tem outras prioridades, como bem ilustra, aliás, o PAC 2.

O que preocupa é que a CPMF venha a ser ressuscitada no próximo mandato presidencial. É bem sabido que, na batalha de 2007, a ministra Dilma Rousseff ocupava posição crucial na sala de guerra do Planalto. Ainda tem a derrota atravessada na garganta. Por outro lado, é bom lembrar que, não obstante a tenacidade dos senadores oposicionistas, o governador José Serra defendeu até o final a prorrogação da CPMF. E tentou de todas as formas desarticular a coalizão contrária à emenda no Senado. Não teve sucesso, mas é pouco provável que tenha mudado de ideia. A resistência à recriação da CPMF, portanto, estará restrita ao Congresso. E a seus eleitores.

ECONOMISTA, DOUTOR PELA UNIVERSIDADE HARVARD. É PROFESSOR TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO