Título: A Selic e a inflação
Autor: Amir Khair
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2010, Economia, p. B14

No dia 17 de março, véspera da reunião do Copom, o Estado publicou, no seu editorial econômico, "Só o aumento dos juros não regula o consumo", afirmando que, além da Selic, existem muitos outros instrumentos para regular a demanda e, de um modo geral, é através do crédito que se pode dimensioná-la. Como exemplo, destacou: volume do crédito, depósitos compulsórios, redução de empréstimos externos e normas de alavancagem.

Foi oportuna e correta a avaliação feita no editorial, pois não se pode apostar todas as fichas nas costas da Selic como reguladora da demanda. Da mesma forma, pode-se afirmar que só a Selic não regula a inflação, pois existem inúmeros fatores que influenciam a demanda e a oferta e que não dependem dela. Entre outros: preços dos alimentos e combustíveis, tarifas das passagens de ônibus, oferta internacional de bens e serviços e choques climáticos.

Neste início de ano a inflação partiu forte devido aos elevados reajustes das tarifas de ônibus e IPTU na cidade de São Paulo, chuvas excessivas, que encareceram os alimentos, e elevação do preço do álcool devido especialmente às boas cotações internacionais do açúcar. Esses efeitos já se diluíram e as análises já preveem a redução desse ímpeto inflacionário.

Como a Selic é apenas um fator a influir na demanda, é importante ampliar o debate sobre a eficácia da política monetária brasileira baseada, há mais de uma década, em elevadas taxas de juros para conter a inflação. Destaco, entre outros, alguns aspectos.

1) Previsão da Inflação - A Selic é estabelecida nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) com base na previsão da inflação futura, especialmente para 12 meses à frente. Como são inúmeros os fatores a influenciar a inflação durante esse período, essas previsões estão naturalmente sujeitas a erros. De fato, considerando a série histórica mensal de janeiro de 2003 a janeiro de 2010, para a inflação prevista para 12 meses à frente e a realizada, a correlação entre elas foi de apenas 20,3%, ou seja, as previsões passaram distante da realidade, o que fragiliza o principal instrumento para a tomada de decisão desse comitê.

2) Nove meses - O argumento principal apresentado nas análises do mercado financeiro e do Banco Central para controlar a inflação é que são necessários cerca de nove meses entre a implementação da política monetária e seus efeitos sobre ela. Inexistem evidências empíricas ou teóricas para sustentar esta assertiva, que mais parece um dogma do que algo efetivo para justificar a ação da autoridade monetária com tanta antecedência sobre uma previsão de inflação sujeita a fortes desvios.

3) Produto potencial - Outra afirmação nas análises sobre ameaças de inflação está no chamado produto potencial, que seria o máximo crescimento da economia possível sem gerar inflação. Há alguns anos era estimado em 3%. Atualmente, entre 4% e 5%. Essas estimativas são baseadas em dados históricos onde a produtividade dos fatores de produção era menor do que a atual. Com o tempo, ela tende a crescer com os avanços tecnológicos. Além disso, carece de sentido estimar produto potencial numa economia globalizada, onde a oferta inclui a proveniente do exterior, que supera várias vezes a oferta interna. Nos próximos anos, ainda teremos excesso de oferta internacional de bens e serviços a preços mais reduzidos, com a retração dos mercados consumidores dos países desenvolvidos.

4) Limitação da oferta - É usual afirmar que a demanda sempre caminhará na frente da oferta. Assim, uma elevação da demanda precisa ser contida até a oferta poder alcançá-la. Caso contrário, a inflação irá subir. Além do argumento acima, que a oferta inclui a proveniente das importações, parece haver uma subestimação dos empresários em estar antenados com a elevação da demanda. É como se fossem surpreendidos e dormissem no ponto. Além de existir capacidade ociosa em vários setores, o tempo de maturação dos investimentos, mesmo para aqueles setores com maior tempo de maturação, já foram previstos há anos. Para as empresas que não investiram com a devida antecedência, a demanda excedente pode ser suprida pela importação durante o tempo em que a oferta interna for insuficiente.

De forma geral, a maioria das empresas se preparara para o crescimento do consumo, pois de 2004 a 2008 o crescimento médio da economia foi de 4,81% ao ano e o do consumo privado, de 5,31%. Mesmo em 2009, com o PIB refluindo 0,2%, o consumo privado cresceu 4,1%.

5) Perspectivas para produção e investimentos - Como consequência das decisões empresariais de elevar a produção, as previsões para este ano apontam que o crescimento da produção e dos investimentos será superior ao do consumo, o que fragiliza o argumento de insuficiência de oferta para atender à demanda. A subestimação da capacidade da oferta interna precisa ser revista, face às previsões de crescimento dos investimentos maior do que a produção. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, os empresários pretendem expandir a capacidade instalada em 14,6% este ano, maior patamar em oito anos. No triênio 2010-2012, a expectativa é de um crescimento de 23,8% e o setor que mais deve crescer neste ano é o de bens de consumo, 16%, o maior patamar dos últimos cinco anos.

6) Juros na ponta - As taxas de juros à pessoa física são muito superiores à Selic devido ao elevado spread bancário. Pode-se dizer que há um descasamento entre essas taxas devido a essa diferença. Na maioria dos países, o spread é bem menor, o que permite que uma alteração na taxa básica cause maior alteração relativa nos juros ao tomador. Além disso, outros fatores atuam anulando a alteração da Selic sobre os juros ao tomador: a adequação do número de prestações, a substituição contínua dos empréstimos mais caros pelas taxas de juros mais baixas do crédito consignado e a ação dos bancos oficiais ampliando o crédito com redução das taxas de juros.

7) A globalização regula a inflação - Antes da globalização se impor como determinante do comércio global, as economias eram relativamente fechadas por alíquotas e barreiras à importação suficientemente elevadas de forma a proteger os fabricantes locais da invasão de produtos do exterior. Assim, aumentos de demanda ocasionavam elevação de preços, especialmente para os setores menos expostos à competição. Com o avanço da globalização, a competição entre as empresas se acentuou e, com isso, os preços de bens e serviços passaram a ficar contidos, à exceção de algumas commodities onde a oferta internacional não acompanhou a elevação da demanda provocada pela incorporação de novos consumidores nos países emergentes, especialmente da Ásia.

Infelizmente, as avaliações do Copom vão na direção oposta, havendo consenso entre seus membros para elevar a Selic em abril, "de forma a conter o descompasso entre o ritmo de expansão da demanda doméstica e a capacidade produtiva da economia". Quem sabe, em futuro não tão longínquo, se possa comemorar nossa inserção na realidade internacional e deixar para trás o desonroso título há tantos anos suportado de País com maior taxa real de juros do mundo.