Título: Patrimônio ferroviário vira pocilga
Autor: Pacheco, Paula
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/04/2010, Economia, p. B6

Área da RFFSA exibe linhas abandonadas e equipamentos obsoletos. Governo promete R$ 46 bilhões para recuperação no PAC 2

O presidente Lula anunciou, no início da semana, a segunda fase do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Para a expansão da malha ferroviária estão previstos investimentos de R$ 46 bilhões, gastos entre 2011 e 2014. Ao todo, em transportes, os recursos passam de R$ 104 bilhões.

Se saírem do campo das boas intenções, os projetos podem significar um avanço no modal ferroviário. Mas o problema atual é como as ferrovias funcionam e são fiscalizadas. O abandono virou uma mina de ouro para pilhagem. Parte do material que pertence à União parou nas mãos de sucateiros. Terrenos foram invadidos ou são tomados por carcaças abandonadas.

O caso acabou de ser investigado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Ferroviário da Assembleia Legislativa de São Paulo. A Polícia Federal também está em fase de conclusão do inquérito, iniciado em dezembro de 2008 com a Operação Fora dos Trilhos, que investiga o desmonte da malha ferroviária (leia mais abaixo).

Mas não é preciso ter o aparato policial para conferir as más condições e a falta de fiscalização sobre o patrimônio público.

Em Mairinque, a 68 quilômetros de São Paulo, há um caso que mostra como a malha ferroviária brasileira vem sendo tratada mesmo depois de mais de uma década desde as primeiras concessões.

À beira da Rodovia Raposo Tavares, no bairro de Pantojo, um imponente prédio construído no fim da década de 30, que serviu como subestação de energia elétrica, chama a atenção à distância. A construção estilosa seria facilmente incluída em um roteiro de visitas de estudantes de arquitetura. Mas de perto não passa de uma grande decepção. A construção histórica virou uma pocilga.

Moradia improvisada. O terreno da subestação, cercado por vegetação e por duas linhas férreas exploradas pela empresa ALL, foi invadido por várias famílias e hoje abriga um campo de futebol e a criação de porcos e galinhas.

Pelo menos seis famílias já se instalaram na área em torno da subestação - que está toda pichada, cheia de entulho, mato e com as paredes solapadas para que a luz natural possa entrar e facilitar a criação de suínos.

A família mais numerosa, a dos Paulino de Medeiros, ocupa a casa principal, com cinco cômodos, a alguns metros do cruzamento entre a linha férrea e a estradinha que liga a Fernão Dias à zona rural. A família é grande: mãe, de 41 anos, e 17 filhos.

Um deles, Luiz Roberto, de 21 anos, mora com a mulher e três crianças num puxadinho de chão batido, feito de sobras de uma madeireira. Apesar do tamanho da família, apenas Luiz Roberto e um dos irmãos trabalham. Eles fazem bico e ganham de R$ 300 a R$ 400 por mês.

A família chegou à subestação há cerca de dois anos. Todos pagavam aluguel em São Miguel Arcanjo, de onde vieram. Apesar da precariedade com a falta de água encanada e de energia, se ajustam aos poucos. As crianças maiores estudam numa escola pública.

Sem dono. O inusitado nesta história é que ninguém se responsabiliza pela subestação de Mairinque. A ALL informou que devolveu a área há dez anos para a União. Miguel Roberto Ruggiero, chefe do escritório de São Paulo da Inventariança da extinta Rede Ferroviária Federal (RFFSA), informa que a área é da ALL enquanto durar o contrato de concessão, ou seja, por 30 anos. Enquanto isso...

Para Temo Giolito Porto, professor da disciplina de Ferrovias da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, o problema com o sistema ferroviário brasileiro vem do modelo de concessões colocado em prática no fim dos anos 90. "Ele poderia ter sido melhor elaborado", comenta.

Na época, o governo optou pelo modelo de concessões regionais. O problema é que os fluxos de carga se dá entre regiões. "Ou seja, qualquer transporte depende de mais de uma concessionária. O detalhe é que uma empresa tem como prioridade atender aos interesses do seu acionista. Se houver sobras ela atende aos outros", explica.

Agora que se fala na revisão dos contratos, Porto teme que algumas concessionárias tentem devolver os trechos menos rentáveis. "Quando ganharam as concessões, elas pagaram um preço que levou em consideração tanto a "carne de pescoço" quanto o "filé mignon". Não seria justo que agora ela quisessem se livrar dos trechos ruins", afirma.