Título: A briga que o País evitou e da qual já não pode sair
Autor: Landim, Raquel
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/04/2010, Economia, p. B8

Marcada por disputas políticas dentro do governo, a briga de 8 anos com os EUA pelos subsídios do algodão chega ao desfecho

Era outubro de 2002, e a equipe de Fernando Henrique Cardoso se preparava para deixar o poder. Após uma análise minuciosa do caso, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, estava convencido de que os Estados Unidos subsidiavam ilegalmente os produtores de algodão, relata seu assessor na época, Eduardo Leão.

"Nós que fizemos. Vamos dar entrada no processo. Não vamos deixar para o próximo governo", disse Malan, em uma das últimas reuniões da Câmara de Comércio Exterior do governo FHC. Dessa maneira, ele resolveu uma queda de braço entre Itamaraty e ministério da Agricultura que ameaçava acabar com o painel do algodão em seu nascedouro.

A decisão de Malan selou o destino de uma das mais emblemáticas disputas da Organização Mundial de Comércio (OMC). Hoje, quase oito anos depois, o painel do algodão pedido pelo Brasil contra os EUA na OMC parece chegar ao final.

Na próxima quarta-feira, o governo brasileiro deve iniciar a retaliação contra os americanos se os dois países não chegarem a um acordo. Não foi uma briga fácil. O processo foi marcado por intensas disputas políticas.

Em nota técnica de junho de 2002, o Itamaraty alertava que seria "extremamente complexo estabelecer a ligação entre os subsídios americanos e os prejuízos ao Brasil". Os diplomatas estavam preocupados com as consequências políticas. "Trata-se de um contencioso que questionará o cerne da política agrícola americana", dizia o documento. O Itamaraty apontava, ainda, temores de contrarretaliação.

"Houve uma forte objeção do Itamaraty. Eles tinham medo de perder. Diziam que ficaria feio para o Brasil", disse Marcus Vinícius Pratini de Moraes, que era ministro da Agricultura. Celso Lafer, que ocupava a pasta das Relações Exteriores, nega resistências. "Era a hora de abrir o processo, mas eu sabia que ia ser complicado, como de fato foi."

Bom de briga. Quando o assunto chegou à Camex, o Ministério da Agricultura avaliava três produtos para contestar os subsídios dos países ricos: soja, açúcar e algodão. Pratini convidou Pedro de Camargo Neto, ex-presidente da Sociedade Rural Brasileira, para ser secretário de Política Agrícola. "Chamei o Pedro porque ele era bom de briga."

Ao assumir o cargo, Camargo Neto pediu aos técnicos que "varressem" os subsídios dos EUA e da União Europeia. Para os europeus, o produto seria o açúcar. Para os EUA, surgiu a ideia da soja, mas foi perdendo força porque a produção brasileira crescia exponencialmente.

Foi quando um funcionário de carreira do ministério, Lino Colsera, sugeriu o algodão. "Os EUA dominavam o mercado internacional. Tudo que faziam afetava os preços", explica Colsera. De 1998 a 2002, o governo americano pagou entre US$ 1,9 bilhão e US$ 3,9 bilhão, por ano, aos produtores de algodão.

Os valores estavam acima do teto de US$ 1,4 bilhão estabelecido na Rodada Uruguai. Logo, os americanos não estavam mais protegidos pela "Cláusula da Paz" - um dos parágrafos do acordo que permitia subsídios desde que respeitassem limites.

Além disso, o assunto tinha potencial para se tornar um tormento político. Os subsídios iam para grandes produtores - o pagamento per capita chegava a US$ 5 milhões por ano. Enquanto isso, países pobres do Oeste da África sofriam com a distorção dos preços.

O dano para o Brasil era simples de provar. O País já tinha sido um grande produtor de algodão, mas a cultura foi devastada pelas pragas. Em 2002, com a migração para o Mato Grosso, a produção de algodão brasileira renascia. Esse esforço estava em risco com o subsídio americano.

Bandeira política. Os painéis do algodão e do açúcar, no entanto, não nasceram de reclamações dos produtores agrícolas. Disputas do comércio internacional costumam surgir quando grupos privados se sentem prejudicados e pedem ajuda aos governos. Mas, nesses casos, os empresários foram chamados a enfrentar americanos e europeus.

"Era para ser uma bandeira política mesmo. Pretendíamos ter um caso contra o Japão também, mas não deu tempo", confessa Camargo Neto. O objetivo do Brasil era liderar o descontentamento que surgia entre os países em desenvolvimento.

Um conflito como esse tem raízes profundas. A China ainda não tinha despertado seu apetite por commodities e os preços dos produtos agrícolas despencaram na década de 90.Os EUA reagiram despejando subsídios e deprimindo mais as cotações.

A atitude americana irritou agricultores ao redor do mundo. Somado a isso, a Rodada Uruguai tinha sido uma frustração. Nos corredores da OMC, em Genebra, já se falava em agrupar os países pobres contra os subsídios do mundo rico.

A agricultura brasileira começava o salto tecnológico que permitiu ao País se tornar um dos maiores produtores do mundo. E surgia uma burguesia no campo, da qual Camargo Neto fazia parte, atenta a questões complexas como os subsídios.

Jorge Maeda presidia a Associação Brasileira de Produtores de Algodão. Filho de imigrantes japoneses, Maeda cultiva hoje mais de 100 mil hectares de terra. Ele conta que recebeu um telefonema de Camargo Neto.

"O Pedro me disse: "Maeda, tem uma oportunidade aqui de abrir um processo na OMC contra os EUA. Vocês querem encapar isso?" Respondi: OMC é complicado... Ele falou: "não vai custar mais de US$ 200 mil". Você tem 24 horas para responder."

Maeda reuniu os principais produtores agrícolas do País e explicou o problema: o Tesouro americano subsidiava, aumentava a produção e os preços caíam. "Disse a eles que, quanto mais desgraça, mais os americanos ganhavam dinheiro", disse.

Os agricultores concordaram em apoiar a briga, mas não imaginavam que a conta chegaria a quase US$ 3 milhões. Com recurso do setor privado e consenso no governo, Camargo Neto foi a Genebra protocolar o painel do algodão, em que o Brasil desafiava os Estados Unidos.

CRONOLOGIA

Uma longa e cara disputa

Outubro de 2002 Primeira ação

O governo brasileiro decidi contestar os subsídios concedidos pelos EUA

Março de 2003 Início do processo

A OMC inicia o processo contra os EUA a pedido do Brasil

Setembro de 2004 Primeira vitória

A OMC divulga seu relatório final e dá vitória ao Brasil, condenando os subsídios dos EUA aos produtores. Os EUA apelam da decisão

Março de 2005 Segunda vitória

O órgão de apelação da OMC mantém a vitória do Brasil. Mas os EUA não se mexem

Agosto de 2006 Reforma nos EUA

EUA reformam seus subsídios. Brasil pede a OMC para checar se painel foi cumprido

Setembro de 2006 a junho de 2008 Na malha da burocracia

Mais de dois anos são gastos em procedimentos burocráticos e apelações dos EUA.

Agosto de 2008 País cobra definições

Brasil retoma o processo do algodão e pede a OMC para definir valor e retaliação

Agosto de 2009 Sai a punição aos EUA

OMC define retaliação de US$ 830 milhões ( US$ 530 milhões em bens). Aprovada também a "retaliação cruzada" com quebra de patentes

Março de 2010 A lista da retaliação

Lista definitiva da retaliação é divulgada. Número de bens afetados cai para 102. País inicia consulta pública sobre "retaliação cruzada"

Maio de 2010 O Dia D

Se não houver acordo, retaliação vai entrar em vigor no dia 7 de maio, uma quarta-feira