Título: Quirguistão: uma revolução russa?
Autor: Tisdall, Simon
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/04/2010, Internacional, p. A18

EUA estão em desvantagem com o aparente apoio de Moscou aos protestos que derrubaram o governo do país

O primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, agiu com rapidez para reconhecer o novo governo do Quirguistão, ao mesmo tempo negando qualquer participação na deposição do presidente Kurmanbek Bakiyev. "Nem a Rússia, nem este humilde servo, e nem funcionários do governo russo estão associados a esses eventos", disse Putin numa declaração sardônica e difícil de crer. Ele afirmou reconhecer a líder oposicionista Roza Otunbayeva como "nova chefe do governo".

Mas se fosse descoberto o envolvimento de Moscou, isto não seria surpreendente. As maquiavélicas tramas russas no Quirguistão, bem como nas outras ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, tornou-se a regra na era Putin. A disputa com China e com os EUA pelo controle de fontes energéticas estratégicas é um dos principais fatores por trás dessa interferência.

Moscou insiste fundamentalmente em considerar essa vasta região como parte de sua esfera de influência. Não é difícil encontrar provas da interferência russa no Quirguistão. Agrados financeiros e comerciais exibidos por Putin durante visita feita por Bakiyev a Moscou no ano passado, entre eles um empréstimo de US$ 2 bilhões, precederam uma decisão tomada pelo então presidente de expulsar a base americana de Manas, ponto fundamental da rota que leva suprimentos ao Afeganistão. Somente o rápido trabalho diplomático do governo Obama e a súbita mudança de atitude de Bakiyev permitiram que os EUA permanecessem em Manas.

É improvável que a aparente jogada dupla de Bakiyev tenha sido bem recebida por Putin, assim como o recente acordo de Bakiyev com o general americano David Petraeus para o treinamento de combate ao terrorismo. Talvez não seja coincidência que emissoras russas, normalmente despreocupadas com o respeito aos direitos humanos, tenham criticado livremente Bakiyev e sua família por acusações de corrupção, nepotismo e formação de quadrilha. Esses temas se tornaram um potente grito de guerra nas manifestações de rua.

O exemplo autoritário de Putin parece ter um papel significativo na subversão das metas democráticas da "Revolução das Tulipas", em 2005, que depôs o primeiro líder pós-soviético do país. Um relatório publicado em 2008 pelo International Crisis Group (ICG) revelou que Bakiyev, depois de ascender ao poder numa maré de sentimento populista, deliberadamente emulou o paradigma de "poder vertical" de Putin. O objetivo era eliminar centros de oposição e dissidência e impor uma "democracia administrada", ao estilo russo.

"A democracia parlamentar do Quirguistão foi agrilhoada. A tarefa da nova legislatura é implementar os desejos do presidente com o mínimo de discussão e nenhuma dissidência. As inovações são um bom exemplo de como o modelo de governo de Vladimir Putin é copiado na Ásia Central", disse o ICG.

Despotismo. O relatório salientou planos de Bakiyev para privatizar recursos energéticos, "um controle arrogante pela família governante, corrupção generalizada, e um monopólio sobre a clientela econômica e política" como pontos críticos potenciais. Todos esses fatores, particularmente a elevação dos preços dos serviços públicos, jogaram seu papel para provocar a segunda revolução pós-guerra fria no Quirguistão. A Rússia agora parece disposta a explorar a situação para seus fins.

Os EUA também têm uma boa razão para se interessar. Roza, uma ex-chanceler que caiu com Bakiyev, deu garantias na sexta-feira de que o acordo sobre a base de Manas seria honrado. Mas a indiferença interesseira de Washington de pelas notórias violações de direitos humanos e desconsideração pelas normas democráticas do regime valeram poucos amigos aos EUA entre os grupos de oposição que hoje detêm o poder.

Visita. Em seu relacionamento pragmático com o Irã, os generais de Mianmar, a Coreia do Norte e outros regimes desagradáveis, Obama se mostrou à vontade no mundo comprometedor da realpolitik. O Quirguistão demonstra como a atitude de fechar os olhos pode rapidamente dar o troco. Enquanto Bakiyev fugia para salvar a vida na quarta-feira, o governo americano estava se preparando para entreter seu aparente herdeiro, Maksim, numa visita a Washington.

Obama não tem desculpa para não saber o que estava se passando. Segundo a Human Rights Watch, vários dos líderes de oposição mais conhecidos foram presos por acusações de inspiração política no ano passado. Em meio à intensificação das manifestações de rua em março, sites da oposição e estações de rádio independentes foram bloqueados ou sofreram interferência, e a publicação de três jornais foi suspensa. Dois jornalistas foram mortos no ano passado.

Sobrou para a figura claramente não radical de Ban Ki-moon, o secretário-geral da ONU, a tarefa de chamar a atenção internacional para esses abusos quando visitou Bishkek, na semana passada. Seus comentários, sem rodeios para seus padrões, cobrando que todos os direitos e liberdades humanos fossem respeitados, podem ter ajudado a encorajar os manifestantes. Por contraste, os EUA continuaram olhando para o outro lado até Bakiyev finalmente cair.

O que vai ocorrer em seguida no vulnerável e pauperizado Quirguistão vai depender da capacidade de seus novos e não tão novos líderes, representando de fato a terceira tentativa do país de um novo começo pós-soviético, provarem ser mais esclarecidos e confiáveis que seus predecessores. Certamente ajudaria se a Rússia, os EUA, e potências regionais como a China e o Casaquistão não tentassem explorar o vácuo de poder, contentando-se com fornecer ajuda e conselhos construtivos, e parassem de usar o país como um grande tabuleiro do Grande Jogo.

Após a revolução, a nova liderança está prometendo grandes coisas. E seria bom pensar, com Roger Daltrey e o Who, que o povo do Quirguistão não será enganado de novo./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL E CELSO M. PACIORNIK

É COLUNISTA DE POLÍTICA EXTERNA