Título: O diplomata que levou Geisel aos comunistas
Autor: Simon, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/04/2010, Internacional, p. A22

Ovídio Melo fez a ditadura reconhecer a independência e o novo governo de Angola

Aos 84 anos, Ovídio de Andrade Melo vive a rotina típica de um aposentado do Leblon, caminha após a sesta, cuida da diabete. Mas a morosidade da velhice esconde um passado tumultuado. Melo encarnou o que foi talvez o episodio mais polêmico da história do Itamaraty, quando, em 1975, o Brasil do general Ernesto Geisel reconheceu a independência de Angola e seu novo governo socialista, que recebia armas da URSS e tropas de Cuba.

Fluminense de Barra do Piraí, Melo recebeu do chanceler Azeredo da Silveira, no inicio de 1975, o cargo de representante especial do Brasil em Angola. Ele deveria coordenar a posição brasileira diante da iminente independência angolana e a formação do novo governo.

Em busca de uma nova era nas relações com a África, Geisel queria provar que o Brasil rompera a solidariedade com o colonistas português. Angola seria o grande exemplo.

Quando Ovídio desembarcou em Luanda, Portugal havia acabado de se comprometer em sair de Angola até o dia 11 de novembro daquele ano. Antes da retirada, haveria uma eleição ¿ que logo descambou para guerra ¿ entre três facções: o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), ligado a Moscou e Cuba; a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA), e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita), aliada à África do Sul.

¿Deveríamos manter uma posição neutra e, no dia 11, `dar as batatas¿ ao vencedor¿, lembra Melo. Mas o cronograma ruiu, os três grupos entraram em guerra e a África do Sul invadiu Angola.

Com o país em convulsão, o representante do governo Geisel viu, no dia da independência, a bandeira portuguesa no Palácio Nacional de Luanda dar lugar à rubro-negra, com foice e martelo estilizado, do MPLA.

Em nome do pragmatismo, o Itamaraty ignorou a coloração ideológica do novo governo e reconheceu o MPLA do médico Antonio Agostinho Neto às 20h00 (com o fuso horário, no primeiro minuto do dia 11 em Angola). O Brasil tornava-se o primeiro país a ter relações com Luanda.

Melo era umas das poucas autoridades não africanas na platéia da cerimônia de posse, sentado ao lado de um russo e um iugoslavo. O avião com as delegações estrangeiras não conseguiu pousar na capital a tempo ¿ o aeroporto estava sendo usado para desembarcar tropas cubanas.

¿Não tinha comida no país, mas fizeram um bolo com o mapa de Angola para Agostinho cortar. Ele disse `não quero partir o país¿. E o representante iugoslavo gritou `quero ficar com o pedaço de Cabina¿! (enclave rico em petróleo)¿, relembra, aos risos.

`Pró-MPLA¿. Contraditório na aparência, o reconhecimento de Angola pela ditadura anticomunista brasileira enfureceu a ¿linha-dura¿ dos militares, setores conservadores do País e a diplomacia americana. Melo foi acusado de ter ludibriado o governo para reconhecer a facção aliada a Moscou.

¿O Ovídio era totalmente pró-MPLA. Foi o responsável pelo reconhecimento¿, diz o jornalista Fernando Câmara Cascudo (filho do folclorista). Ele trabalhou para o maior jornal do país, da FNLA. Ao diário, incorporou slogans da ditadura brasileira: ¿Angola, ame-a ou deixe-a¿.

Melo veste a carapuça de ¿pró-MPLA¿. Ele diz que, em agosto quando Agostinho tomou o controle de Luanda, o grupo ¿já era o governo¿. ¿É lógico que teríamos relações privilegiadas com eles¿.

Recentemente, Jerry Dávila, historiador da Universidade da Carolina do Norte, descobriu na Fundação Getúlio Vargas (FGV) do rio um documento sobre a saga do Brasil em Angola. Trata-se de um telegrama no qual Ítalo Zappa, chefe de Melo e arquiteto da estratégia para reconhecer as ex-colônias portuguesas, exortava o chanceler a desistir da empreitada angolana.

Zappa temia a piora da violência ¿ a missão brasileira, a única ocidental em funcionamento, já havia sido metralhada. Em seis meses de Luanda, melo, que já era franzino, perdera dez quilos. Até a motoneta que ele comprou para a embaixada, único veículo capaz de transitar por Lunada, foi roubada.

¿Contra a opinião do ministro Ovídio Melo, sou levado, por tudo que vi e ouvi (em Luanda), a solicitar a Vossência a retira imediata dos funcionários¿, dizia a mensagem, escrita a três meses da independência. Silveira recusou o pedido de Zappa.

¿Só soube desse telegrama pelo professor Dávila¿, diz Melo. ¿Zappa estava com medo e desistiu. Queria fechar a representação e deixar dois portugueses lá, sendo um salazarista. Mas eu não. E Geisel foi muito firme.¿

A pressão sobre o brasileiro cresceu dias após a independência, quando o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, anunciou ao mundo que Fidel Castro estava enviado suas tropas de elite a Luanda. Era o inicio de Operação Carlota, que buscava conter o avanço dos saldados sul-africanos em Angola.

Melo não havia informado o Itamarty sobre os soldados de Fidel e, após meses sem noticias do Brasil, ouviu o telegrafo apitar. Saiu um texto curto: ¿Onde estão os cubanos?¿

As tropas de Cuba começaram a chegar no dia da independência, garante Melo. ¿Poderia haver instrutores e espiões antes. Mas não na capital, onde eu e meus funcionários estávamos¿.

O Assunto, justifica, era ¿secretissimo¿ para Agostinho e ele não tinha acesso a esse tipo de informação.

O historiador Dávila desconfia da versão do brasileiro. Para ele, Melo e Zappa sabiam dos instrutores cubanos. ¿Mas isso era tido como algo necessário para a sobrevivência do MPLA.

Volta. Um mês após a independência angolana, Melo foi recebido no Brasil com um gelo do chanceler Silveira e uma promessa de promoção a embaixador que só seria cumprida 11 anos depois, com a redemocratização. ¿Silveira preferiu promover um diplomata ligado a SNI (Serviço Nacional de Informações)¿.

Melo ainda recebeu alguns indesejáveis avisos de colegas. ¿A Marinha quer te matar¿, disse um. ¿Você vai ser preso,¿ alertou outro.

A fama de esquerdista não era nova. Com o golpe de 1964, Melo recebera um questionário com a pergunta: ¿Dizem que o senhor é esquerdista. A quem o senhor atribui essa acusação?¿ ¿O Itamaraty era aristocrático, metido a sebo. Nós (Melo e Zappa) éramos democráticos. É claro que estávamos à esquerda daquela gente¿, diz ele hoje.

Antes de Angola, melo já havia passado por postos de prestigio. Foi representante na ONU para assuntos de descolonização, o que lhe rendeu as credenciais para ir a Luanda, e serviu como cônsul-geral em Londres ¿ onde foi o primeiro chefe de um jovem e ¿habilidoso¿ diplomata recém-saido do Instituto Rio Branco, um tal de Celso Amorim.

Mas, poucos meses após Geisel cumprir sua promessa de iniciar uma nova era nas relações com a África, Melo foi isolado com um posto na Tailândia. ¿Eu era problema e oi Itamaraty me queria longe.¿ Em seguida, serviria na Jamaica, até se refugiar, aposentado, no Leblon.

Hoje questionado se retornou a Angola depois de 1975, Melo dá com os braços. ¿Não teria mais nada a fazer por lá.¿

Passado

CESLO AMORIM

Chanceler brasileiro

¿Aprendi com o embaixador Ovídio, meu primeiro chefe no exterior, lições de patriotismo¿

Para entender

Geisel `pragmatismo¿

A diplomacia do presidente Ernesto Geisel afastou-se do forte alinhamento com os EUA que havia sido adotado na primeira fase da ditadura militar, após o golpe de 1964. O Itamaraty deveria passar a se pautar pelo principio do ¿pragmatismo responsável¿, termo cunhado pelo chanceler Azeredo da Silveira.

Geisel olhava para a África em busca de novos mercados e fontes de energia capazes de atenuar o impacto do primeiro choque do petróleo (1973-1974) na economia brasileira. ¿Havia uma forte noção de que Angola era a porta de entrada para a África e o Brasil havia perdido muito tempo apoiando o colonialismo português¿, afirma Jerry Dávila, historiador da Universidade da Carolina do Norte, que está escrevendo um livro sobre a história da diplomacia brasileira na África. Antes de Angola, o Brasil já havia tentado se aproximar da recém-independência Moçambique, governada pelo comandante da Frelimo, Samora Machel, mas a oferta foi recusada por causa do histórico de apoio brasileiro a Portugal.

Além de Angola, o governo Geisel entrou em choque com os EUA em outros temas. O ambicioso acordo nuclear com a Alemanha Ocidental para construção de reatores foi criticado em Washington. E o Brasil, cortejando o bloco árabe, decidiu votar em favor de uma resolução da ONU que considerava o ¿sionismo uma forma de racismo¿.