Título: Escolha errada na Unasul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2010, Notas e informações, p. A3

O ex-presidente argentino Néstor Kirchner, atual deputado pelo partido peronista do qual é líder, e candidato declarado à sucessão de sua mulher Cristina, a quem fez eleger em 2007, tornou-se na terça-feira o primeiro secretário-geral da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). Não faz sentido.

A entidade ? ideia lançada pelo então presidente Fernando Henrique e instituída em 2004 numa conferência em Cuzco, graças ao empenho do presidente Lula ? tem a pretensão de integrar os países da área com vistas à formação de um bloco regional econômico e político inspirado na União Europeia ? nos seus tempos promissores, naturalmente.

De duas, uma, porém. Ou essa ambição, como desdenham os seus muitos críticos, só serve para rechear os discursos grandiloquentes de que a região é farta ou, como parece acreditar a diplomacia brasileira, se materializará numa força política em condições de rivalizar com a Organização dos Estados Americanos (OEA), com a vantagem ? vai sem dizer ? de não ter entre os seus membros os Estados Unidos da América.

Na primeira hipótese, a eleição de Kirchner, por consenso, atestaria a irrelevância do projeto da Unasul, cuja criação, aliás, até agora ainda não foi ratificada pelos Parlamentos de 8 dos seus 12 países integrantes, incluindo os do Brasil e da Argentina. Daí a ironia que se ouve em Buenos Aires: "Kirchner dirigirá um clube do qual não é sócio." Na segunda hipótese, a sua escolha é um contrassenso. Ele pode ser tudo, menos um "conhecedor do Continente", como o elogiou o brasileiro Lula.

Não só não conhece, como tampouco deu mostras alguma vez de querer conhecer. "Não lhe agrada viajar ao exterior, não entende as diferenças culturais (entre os sul-americanos) e, acima de tudo, faz política interna com as relações internacionais", apontou o analista argentino Joaquín Morales Solá, no jornal La Nación, de Buenos Aires. De mais a mais, é sabido que Kirchner nunca apostou na Unasul, essa "criação do Brasil", como dizia. Por isso ele nem apareceu na conferência inaugural do bloco, em Cuzco, alegando que passava mal em lugares altos. Lula retrucou com um sarcasmo: "Eu corro qualquer risco pela unidade sul-americana."

Isso ainda não é tudo. Primeiro, ele se pauta pela ideologia ? o que o aproxima do caudilho venezuelano Hugo Chávez e do seu discípulo equatoriano Rafael Correa (talvez o mais esforçado de seus cabos eleitorais na Unasul), na mesma medida em que contribui para que guardem prudente distância da organização os líderes do Peru, Alan García, Colômbia, Álvaro Uribe, e Chile, Sebastián Piñera. Os dois primeiros, sintomaticamente, não compareceram à reunião em que Kirchner foi escolhido. Ali, Chávez o chamou de "grande amigo, profundo companheiro, solidário em todos os tempos e todas as dificuldades".

Essa solidariedade já o atirou em águas turvas. A Justiça investiga um suposto esquema de pagamento de propinas em negócios de empresas argentinas na Venezuela, que seria de conhecimento de Kirchner, quando presidente, e do qual ele teria até participado por interpostas pessoas. Em segundo lugar, por ser parlamentar, chefe partidário e candidato a um novo mandato presidencial, Kirchner encarna um evidente conflito de interesses ? entre o seu papel na política argentina e o papel de árbitro imparcial do organismo que lhe tocou conduzir. Por fim e em consequência, o seu cacife para lidar com os problemas nas relações bilaterais de vários países da área é escasso.

É bem possível, diga-se em seu favor, que a sua eleição talvez ajude a atenuar a crise no relacionamento entre o seu país e o Uruguai, que data de 2005, quando a República Oriental instalou, na fronteira com a Argentina, uma fábrica de celulose considerada poluente. Desde então, manifestantes mobilizados por Kirchner impedem a passagem no local. Nos dois últimos anos, sob a presidência de Tabaré Vázquez, o Uruguai vetou Kirchner na direção da Unasul. O seu sucessor, José Mujica, levantou o veto, lembrando embora o "custo político" da decisão. Para a América do Sul, o resultado vai sair bem mais caro.