Título: Em defesa das mulheres solteiras de Washington
Autor: Dowd, Maureen
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/05/2010, Internacional, p. A12
Elena Kagan pode se tornar a mais jovem mulher a ocupar um posto na Suprema Corte, mas o fato de ela nunca ter se casado levantou suspeitas sobre sua sexualidade
Quando uma mulher deixa de ser solteira e vira uma "mulher que não se casou"? De acordo com a observação de minha amiga Carol Lee, repórter do site Politico: "Isto me parece uma distinção cruel e um desvio assustador."
"Solteira" carrega uma conotação de disponibilidade e possibilidade, enquanto a "mulher que não se casou" traz consigo as temidas implicações do tipo "passou do prazo", "faltou sorte", "está acabada" e "esgotaram-se as chances". Um aroma de naftalina e de tia perpétua.
Os homens, em geral mais favorecidos pela natureza quando envelhecem, podem ser chamados de solteiros em qualquer idade. Mas, no caso das mulheres, com frequência elas deixam de ser solteiras depois de chegar aos 40 ou 50 anos, ou após simplesmente ultrapassarem a idade de ter filhos.
As mulheres passam então a ser consideradas "mulheres que não se casaram", o que significa que não estão sozinhas por sua própria escolha. Há exceções pós-50 anos. Basta pensar no exemplo das celebridades: Kim Cattral, a Samantha do seriado Sex and the City, Dana Delany, de Desperate Housewives, Susan Sarandon e Madonna são vistas como solteiras atraentes. Mas, para aquelas que têm pequenos problemas de peso, um corte de cabelo ruim ou um guarda-roupa ultrapassado, pressupõe-se que sejam mulheres indesejáveis, nada atraentes, que não se casaram.
Os funcionários da Casa Branca estavam tão ansiosos para acabar com qualquer especulação em relação à possibilidade de Elena Kagan ser gay que acabaram buscando uma saída pré-feminista, preferindo descrevê-la com o infeliz aposto "não se casou", em vez do mais divertido adjetivo "solteira".
Seria de se esperar que eles inventassem para a história de Elena, a mulher que pode se tornar a mais jovem juíza da Suprema Corte dos EUA, uma narrativa mais inspiradora do que a da solteira que fica para titia.
Nos relatos iniciais sobre Elena, ela parecia ser dotada de uma arrogância atraente, posando como juíza no livro de sua turma escolar, gabando-se de ter "a fama de ser excelente professora", zombando dos juízes da Suprema Corte como procuradora-geral, fumando charutos, bebendo cerveja e jogando pôquer. Além disso, ela apresentava um curioso traço amalucado: um amigo contou que ela costumava se deixar consumir pelo trabalho e, às vezes, estacionava o carro à noite e esquecia o motor ligado até a manhã seguinte.
Houve também sussurros e boatos sobre sua sexualidade e os sujeitos na Casa Branca assumiram a defensiva, protestando excessivamente e afirmando que ela não é gay. Se, em média, um a cada nove americanos é gay, por que não poderia haver um homossexual entre os nove magistrados da Suprema Corte? Afinal, o presidente Obama citou as seguintes palavras de Oliver Wendell Holmes: "É a experiência que confere a uma pessoa a capacidade de desenvolver uma sensibilidade comum, a compreensão de como o mundo funciona e de como vive uma pessoa normal."
Elena disse a um amigo do governo que ela não é gay, apenas sozinha. Ainda assim, isso não significa que seus assistentes na Casa Branca, na tentativa de afastar os rumores de homossexualismo, devam transformar a história dela no mais grisalho dos estereótipos: o da mulher inteligente que se dedicou ao trabalho, não encontrou um parceiro, desistiu de procurá-lo e se jogou no trabalho ainda mais - e, nesse processo, deixou de ser uma solteira e tornou-se uma "mulher que não se casou".
É inexplicável, levando-se em consideração que esse deveria ser o momento triunfal de Elena. Se a nomeação for aprovada, ela será somente a quarta mulher a servir no mais alto dos tribunais. E o caso estabelece um contraste patético com outro episódio de destaque nos noticiários de Washington: a renúncia do deputado republicano Mark Souder, de Indiana, o mesmo panaca que prega a abstinência sexual, mas que não conseguiu se abster do sexo.
O congressista é repulsivo. Mas, sem fazer esforço, se beneficia do ditado de Henry Kissinger sobre as propriedades afrodisíacas do poder. Souder teve um caso com uma moça mais jovem que trabalhava em seu gabinete. "Em jornada de apenas meio período", disse ele. Ridículo.
Eles tiveram encontros íntimos em parques públicos e atracadouros de barcos e, em um episódio de hipocrisia, ela até o entrevistou sobre a importância da abstinência para um vídeo promocional. Mais um caso de político identificado com os valores da família pensando que sabe o que é melhor para todos os demais, mas incapaz de aplicar os mesmos princípios a si mesmo.
Por algum motivo, a história de Elena torna-se ainda mais deprimente porque é narrada no pretérito perfeito, como se, aos 50 anos, ela tivesse se resignado a uma existência assexuada e enclausurada enquanto decide sobre casos que tocam a vida privada de todos os americanos.
Trata-se de um eco perturbador daquelas estudantes de Harvard que revelaram no programa 60 Minutes ter o hábito de ocultar dos pretendentes que conheciam o fato de terem estudado em Harvard, pois esse era o beijo da morte em se tratando de sujeitos que se sentem ameaçados por mulheres bem sucedidas.
Qual o motivo por trás do pressuposto de que Elena tenha ficado para titia? Por que ela não estaria ansiosa para vir para Washington e conferir os solteiros chiques e intelectualizados da era Obama, talvez pedir a Michelle Obama que lhe arranje um encontro, quem sabe marcar uma festa para solteiras com Sonia Sotomayor ou até se aproveitar do novo emprego para se inscrever numa agência de encontros com um perfil mais atraente? / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL