Título: Descompasso
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/06/2010, Espaço Aberto, p. A2

Pesquisa Datafolha divulgada em 30 de maio no jornal Folha de S.Paulo traz importantes dados relativos ao posicionamento ideológico do eleitorado do País. Estratégias eleitorais, quando orientadas por essas posições, costumam atribuir ao cidadão brasileiro uma opção de esquerda, como se aí se jogasse o destino de uma eleição. Resultado disso é que nas últimas eleições presidenciais, assim como na atual, as opções que se apresentaram foram de centro-esquerda. Não há candidatos que se reivindiquem do centro e da direita. Esta última palavra, aliás, virou um anátema. Ser de esquerda é politicamente correto, ser de direita, não.

Ora, a pesquisa Datafolha mostra que da extrema-esquerda à centro-esquerda, passando pela esquerda, o porcentual do eleitorado é de apenas 20%, assim distribuídos: extrema-esquerda, 7%; esquerda, 5%; e centro-esquerda, 8%. Ou seja, nem um quarto do eleitorado se diz de esquerda, enquanto os partidos aí se concentram na busca de votos! Estrategicamente, não faz nenhum sentido.

Do centro à extrema-direita, passando pela centro-direita e direita, o porcentual é de 54%. Os números são estes: centro, 17%; centro-direita, 13%; direita, 10%; e extrema-direita, 14%. Ou seja, mais da metade do eleitorado se situa nesse espectro, enquanto os partidos que seriam dessa linha nem ousam apresentar um candidato a presidente. Estrategicamente faria sentido, mas não houve um passo nessa direção.

Ademais, 26% dos eleitores não responderam ou não deram nenhuma resposta, seja por não se reconhecerem nessas denominações, seja por não entendê-las, seja por considerá-las irrelevantes.

Em todo caso, esses números mostram um evidente descompasso entre os partidos, os eleitores e os candidatos. É como se se atribuísse à sociedade brasileira uma outra representação além da que ela tem de si mesma.

Pode-se, evidentemente, arguir que as pessoas não saibam o que seja esquerda e direita, em seus vários matizes. Isso não mudaria os termos da questão, porque a utilização que os partidos deles fazem está baseada na mesma imprecisão, atribuindo aos eleitores um pensamento que não lhes diz, aparentemente, respeito. Se os partidos utilizam essas denominações, é porque acreditam que os eleitores compreendem o sentido dos termos utilizados, comportando-se eleitoralmente de uma forma que lhes seja correspondente.

Mais interessante ainda é a destinação desses votos. Temos lido que os votos da "direita" estariam destinados "naturalmente" a Serra, como se eles lhe viessem por gravidade. Aparentemente faria sentido, pois Dilma e Marina não se situam publicamente nesse espectro. Ora, os números são bem mais complicados.

Dos eleitores de Serra, 61% se dizem de centro à extrema-direita; de Dilma, 51%; e de Marina, 54%. Isto é, cada um dos candidatos tem mais da metade dos seus eleitores nesse espectro ideológico, com vantagem para o candidato tucano, embora esta não chegue a ser expressiva do ponto de vista eleitoral. A candidata petista chega forte também nesse segmento, o que explicaria sua recente guinada para o centro do espectro ideológico. No caso dela, há números extremamente interessantes: 13% do seu eleitorado seria de extrema-direita; 9%, de direta; e 13%, de centro-direita. Mesmo se descartássemos os eleitores de centro, seus partidários de "direita" seriam 35%. Número nada desprezível.

Os números de Marina são igualmente reveladores. Para uma pessoa egressa de movimentos sociais, apoiadora das posições esquerdistas do MST, não deixa de chamar a atenção o fato de 15% dos seus eleitores estarem na extrema-direita, 13% na direita e 15% na centro-direita. Isto é, 43% dos seus eleitores não se reconheceriam em suas posições históricas. Isso explicaria, mesmo, seu movimento acentuado em direção ao centro do espectro político, assumindo posições próximas dos tucanos e escolhendo um empresário para vice.

Os números de Serra são também relevantes. Apenas 32% dos seus eleitores seriam de "direita", enquanto seria de esperar um porcentual nitidamente superior. Ou seja, o argumento de que teria naturalmente os votos nesse segmento não se estaria confirmando. Dilma e Marina têm avançado significativamente nessa área. A movimentação tucana em torno da esquerda não estaria produzindo os resultados esperados. Um eleitorado órfão do centro à extrema-direita termina se segmentando eleitoralmente, não se reconhecendo ou imperfeitamente se reconhecendo nas alternativas que lhe são oferecidas.

Outro dado muito interessante diz respeito aos simpatizantes dos partidos. Do PT, 51% se dizem do centro à extrema-direita. Os números coincidem com os de Dilma, mostrando um descompasso ainda maior entre seus simpatizantes e as posições doutrinárias do partido. Enquanto o PT continua se reivindicando das posições tradicionais da esquerda, não tendo feito nenhuma revisão doutrinária, boa parte dos seus simpatizantes já se teria tornado "social-democrata" ou mesmo "neoliberal". Do PMDB, 63% declaram-se de centro à extrema-direita e apenas 18% de centro-esquerda à extrema-esquerda. Tal número mostraria o acerto da estratégia de Lula de fazer uma aliança com o PMDB, indicando esse partido o candidato a vice. Do PSDB, 75% se declaram de centro à extrema-direita, porcentual superior ao da intenção de voto (61%) em Serra. Haveria todo um trabalho seu a ser desenvolvido nessa área. Do PV, 58% se declaram de centro à extrema-direita, porcentual próximo dos 54% de intenção de voto de Marina.

É evidente que pesquisas qualitativas deveriam afinar esses conceitos e números, principalmente no que diz respeito ao que os eleitores entendem por "esquerda" e "direita", em suas distintas nuances. Mas os números apresentados sinalizam para questões importantes, que realçam o descompasso existente entre as posições dos candidatos, as estratégias partidárias e as representações que os eleitores fazem de si e dos seus partidos de preferência.

PROFESSOR DE FILOSOFIA NA

UFRGS. E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR