Título: Brasil e Turquia abrem nova era na diplomacia
Autor: Mello, Patrícia Campos
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/06/2010, Internacional, p. A19

O acordo de troca de combustível mediado pelo Brasil e pela Turquia no Irã era ingênuo e não resolvia a questão nuclear. Mas a iniciativa brasileira e a oposição dos dois países às sanções contra o Irã inauguram uma nova era nas relações internacionais, um "plano B" ou "segundo trilho" na diplomacia global. Essa é a opinião de David Rothkopf, analista do Carnegie Endowment for International Peace e colunista da revista Foreign Policy. "O Brasil entrou no palco das grandes potências e esse foi o primeiro exercício do País em uma questão central", diz Rothkopf. "Eu não concordo com a política brasileira para o Irã, mas acho que os EUA precisam se acostumar a ter grandes potências que não assinam embaixo de todas as iniciativas de Washington ou da Otan." Abaixo, trechos da entrevista que ele concedeu ao Estado.

Qual é o impacto do voto do Brasil contra as sanções ao Irã para as relações bilaterais com os EUA?

A tentação é exagerar a importância do voto negativo. Certamente alguns no governo americano estão dizendo que é um problema sério, mas a realidade é que os EUA e o Brasil têm uma relação estratégica que vai continuar sendo importante, mesmo quando há divergências. Na realidade, acho que o voto traz até benefícios para o Brasil e a Turquia, porque envia um recado que os dois não vão concordar sempre com os EUA, que eles têm visões independentes e, se suas posições não forem ouvidas, isso vai enfraquecer a posição internacional em qualquer questão.

O sr. concorda com a interpretação de que o Brasil e a Turquia ficaram isolados?

De jeito nenhum. Em primeiro lugar, se olharmos para as sanções que foram aprovadas, todas as coisas que seriam realmente difíceis para Rússia e China foram cortadas. Portanto, há dois tipos de resistência. Há a resistência aberta da Turquia e Brasil, que apresentaram um plano alternativo às sanções. E há a resistência de bastidores de Rússia e China, que diluíram as sanções e depois anunciaram iniciativas conjuntas com o Irã, dando a entender que continuam mantendo uma relação com os iranianos. As sanções não foram uma vitória para os EUA.

E se os EUA e a Europa adotarem agora sanções unilaterais, mais duras?

Na economia em que vivemos hoje, isso não faz muita diferença. Pois os iranianos podem simplesmente burlar as sanções, muitas grandes economias podem continuar fazendo negócios com eles. Muitas empresas operam em diferentes países.

Se as sanções da ONU não fizerem efeito, as sanções unilaterais dos EUA e da UE também não, o que vem depois?

Provavelmente esforços diplomáticos, dos russos, turcos, brasileiros, e algumas ameaças. Mas a aposta é que entre 12 e 18 meses os iranianos testam uma arma nuclear ou anunciam que já têm ogivas. Todo mundo vai ficar muito preocupado e os EUA afirmarão que, caso os iranianos usem as armas, eles atacarão.

Então parte-se para dissuasão?

Sim, só que não se sabe se dissuasão funciona nesse caso. A dissuasão (deterrence) foi criada para um conflito entre dois Estados, EUA e União Soviética, e a perspectiva de destruição mútua detinha os dois porque eram atores racionais. Já com os iranianos, há grande chance de uma ogiva cair nas mãos de um grupo terrorista. Dissuasão nuclear não funciona com terroristas.

Voltando à questão geopolítica, o fato de Brasil e Turquia terem se descolado dos EUA na questão iraniana aponta para uma nova ordem?

De um lado, pode-se questionar o valor do acordo que a Turquia e o Brasil intermediaram com o Irã. Não foi significativo para resolver o problema iraniano. Mas em outro nível, podemos dizer que esse acordo indica um segundo trilho na diplomacia global. Em vez de ter de estar com os EUA, Europa ou Japão, a tradicional aliança, pode-se lidar com os Brics (acrônimo para Brasil, Rússia, Índia e China) ou poderes emergentes. Entramos em uma dinâmica de equilíbrio de poder em que há quatro ou cinco poderes no mundo. O Brasil entrou no palco das grandes potências. E esse foi o primeiro exercício do País em uma questão central. Provavelmente, não foi muito bem-sucedido. Eu não concordo com a política brasileira para o Irã, mas eu acho que os EUA precisam se acostumar a ter grandes potências emergentes desempenhando um papel que não é de simplesmente assinar embaixo de todas as iniciativas dos EUA ou da Otan.

E qual é essa nova ordem que está surgindo?

Nós tivemos por muito tempo um mundo bipolar, EUA e União Soviética, comigo ou contra mim, Guerra Fria. A União Soviética caiu e houve muita discussão sobre o novo mundo unipolar, unilateral, com os EUA como a única superpotência. Isso culminou com a invasão do Iraque, e o mundo não gostou, era preciso ter um contraponto aos EUA. Mas o problema é que os contrapontos tradicionais, Europa, Japão e Rússia, estavam muito fracos. Ent"o vemos surgindo novas potências, China, Índia e Brasil como as principais. É um mundo menos G-8 e mais G-20.

Isso apesar de o acordo não ter sido aceito?

O acordo mediado pelo Brasil e pela Turquia era ingênuo e não era eficiente. Os iranianos usaram os brasileiros e turcos para ganhar tempo, mas a quantidade de urânio que permaneceria no Irã era suficiente para fazer armas nucleares. Agora, isso é o começo de alguma coisa. Nós vamos ver cada vez mais essa diplomacia "plano B".

Os EUA vão se acostumar a essa diplomacia "segundo trilho"?

Vai demorar muito. Os EUA são grandes, poderoso e arrogantes. Mas estamos entrando em uma era em que a diplomacia americana vai ser muito mais difícil, não apenas por causa da emergência dessas potências, mas porque os EUA vão ter menos dinheiro e mais preocupações em casa. Os EUA vão poder fazer menos e, portanto, terão de deixar outras nações liderarem também.