Título: Turquia pretende resgatar influência otomana na Ásia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/06/2010, Internacional, p. A18

Aproximação com Irã e crise com os EUA reforçam o islamismo de Erdogan, que usará a religião para vencer as eleições em 2011 Leonardo Trevisan -

A aproximação da Turquia com o Irã ainda não foi bem compreendida pelos turcos. As dúvidas começam pela preocupação dos que não são religiosos, em uma sociedade em que mais de 90% declaram-se muçulmanos. "A amizade com o Irã afetará meu direito de não usar véu, mesmo sendo muçulmana?", questionava uma jovem de 24 anos, administradora de empresas, nas ruas de Istambul.

As dúvidas continuam entre os que suspeitam de "finalidades eleitorais" na nova política externa do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan. As eleições legislativas serão em maio de 2011. A oposição social-democrata encontrou uma cara nova, a do economista Kemal Kilicdaroglu, e o emprego do premiê está em risco.

Há também os que veem na aproximação com o Irã um reencontro com o "passado otomano", que afronta os EUA. Quem pensa assim gosta de lembrar que, já há algum tempo, os iranianos assistem aos canais de TV da Turquia.

O Brasil não aparece nesse novo jogo de forças da sociedade turca, apesar do aperto de mãos entre o presidente brasileiro Luis Inácio Lula da Silva, seu colega iraniano Mahmoud Ahmadinejad e Erdogan. "A elite secular conhece Lula, mas nada além disso", afirmou Nilufer Nahit, professora do Centro de Estudos Americanos da Universidade Bahceshir.

A rápida urbanização da sociedade turca trouxe ao jogo político uma nova força, que acredita nos valores islâmicos, tem poder de decisão nas eleições e não se preocupa com política externa, mas é suscetível ao que Nilufer chama de "lógica do sehid", o sofrimento dos mártires. "Por esse motivo, os turcos mortos na Flotilha de Gaza são muito mais conhecidos na sociedade do que a questão iraniana", disse.

A elite secular turca surpreendeu-se com a aproximação com o Irã. Emre Oktem, professor de direito internacional da Universidade Galatasaray, duvida da vitalidade dessa relação. Primeiro, porque o islamismo turco é majoritariamente sunita, diferente do xiita iraniano.

Oktem lembra que a Turquia era muito próxima da monarquia do xá Reza Pahlevi e se distanciou da Revolução Islâmica de 1979. Durante a Guerra da Bósnia, nos anos 90, Turquia e Irã ficaram em lados opostos.

Nilufer e Olkem insistem na mesma tese. Em 2005, quando a União Europeia freou o processo de entrada da Turquia no bloco, uma velha tradição renasceu e a política externa neo-otomana começou a aparecer em diversos círculos.

Erdogan começou a tentar construir sua liderança no mundo islâmico negociando um acordo, em 2006, entre Síria e Israel. Ayse Sahin, consultora de direito internacional em Istambul, foi mais contundente. "O Irã oferece uma nova alternativa, de efeito passageiro, para a difícil questão europeia."

A memória da grandeza do Império Otomano tem inegável força política na Turquia. O drama da flotilha mobilizou a sociedade turca. Nilüfer acredita que Erdogan queira ser reconhecido como líder nas ruas dos países árabes.

Além da TV turca ser popular no Irã, o YouTube é proibido em ambos os países e famílias iranianas costumam passar férias na Turquia. Cada um desses pontos, segundo Nilufer, é entendido pela elite secular como "sinais da influência turca além de suas fronteiras", que são aproveitados politicamente.

De acordo com Oktem, apesar da queda da popularidade de Erdogan - ele tinha 47% de aprovação, em 2008, e agora tem 38% -, o premiê ainda em muita força política. De maneira geral, a sociedade turca não acredita no desenvolvimento de armas nucleares no país vizinho.

"Os medos são outros", afirma Nilufer. Para ela, até mesmo a elite secular turca acredita que a Turquia possa ganhar a guerra de influência com o Irã teocrático pelas ruas dos países árabes.

Os empresários iranianos têm outra visão. Aykut Eiken, presidente da Câmara de Comércio Brasil-Turquia, acredita que o novo relacionamento com o Irã garante o bom fornecimento de gás e de outros hidrocarbonetos para a Turquia, que ainda é muito dependente do abastecimento russo.

No entanto, segundo dados do Conselho de Relações Econômicas Externas da Turquia, o Irã representou apenas 2% das exportações turcas em 2009 (US$ 2 bilhões) e 3,4% das importações (US$ 3,4 bilhões). Com números assim, não será por esse caminho que o antigo Império Otomano será reconstruído na velha Pérsia.