Título: Reflexos da crise europeia sobre o Brasil
Autor: Pastore, Afonso Celso
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/06/2010, Economia, p. B11

Vem crescendo no mundo uma segunda crise, diferente da ocorrida em 2008. A crise de 2008 iniciou-se com o estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos, levando a uma crise bancária. Ela propagou-se para o mundo por meio de uma contração global do crédito bancário, que derrubou não somente a produção industrial em todos os países, como também o total das exportações mundiais e os preços internacionais de commodities. A crise atual é uma crise de dívidas soberanas, e concentra-se nos países da periferia da união monetária europeia.

Crises de dívida soberana podem gerar crises bancárias, e seus sinais podem ser detectados no comportamento das taxas de juros interbancárias, que refletem imediatamente a percepção de risco de solvência de bancos. Mas, contrariamente ao ocorrido em 2008, até o momento esses sinais não são detectados. Mesmo diante dos problemas vividos pela Grécia e, em menor escala, Espanha e Portugal, a taxa Libor mostra um prêmio inferior a 50 pontos base sobre a taxa básica de juros, enquanto no auge da crise, em 2008, esses prêmios chegaram a mais de 350 pontos base.

Há, por trás desse comportamento, a percepção de que, mesmo diante da crise de dívida soberana em alguns países da área do euro, existe um compromisso das autoridades em evitar uma segunda crise bancária. Já os prêmios dos títulos de dívida soberana cresceram sensivelmente, mesmo diante das compras do BCE no mercado secundário. No caso dos títulos de dívida soberana, há atualmente spreads tão altos quanto 600 pontos, no caso da Grécia, ou 300 pontos, no caso de Portugal, e provavelmente ainda assistiremos a elevações nestes e em outros países.

A resolução desta segunda crise não está à vista no horizonte, e imporá à Europa um crescimento econômico medíocre por um extenso período. Contrariamente aos EUA, que segundo as projeções da OCDE cresce atualmente acima de 3% ao ano, e deverá manter taxa semelhante em 2011, o PIB da Europa ainda se arrasta em uma recuperação extremamente lenta, quer quando olhamos para os 16 países da área do euro, quer quando olhamos para a totalidade dos 27 da União Europeia.

Mas há, dentro da Europa, diferenças entre os países. Na resposta à crise de 2008 redescobriu-se o "multiplicador keynesiano", louvando a capacidade dos déficits públicos de tirarem as economias rapidamente da recessão. Mas muitos se esqueceram de que, quanto mais elevados forem os déficits públicos, mais rapidamente crescem as dívidas públicas. A Itália, com uma dívida pública que antes da crise já era de mais de 100% do PIB, reconheceu que não poderia abusar do instrumento fiscal, e elevou as despesas públicas em apenas 2% do PIB, com receitas públicas estáveis. Sem contar com os estímulos fiscais, o seu PIB conheceu uma forte queda, retornando aos níveis médios do período 2001/2002.

A Grécia não teve a mesma prudência. Com uma dívida tão alta quanto a italiana, optou por elevar seus gastos públicos em 8 pontos de porcentagem do seu PIB, provocando forte crescimento da sua dívida. Por algum tempo festejou uma queda menor de seu PIB, mas o tamanho de sua dívida a colocou em uma situação de insolvência. As autoridades podem negar enfaticamente, mas dificilmente a Grécia escapará de uma reestruturação de sua dívida. Enquanto as autoridades não aceitarem esta fatalidade, terão de enfrentar os custos de ajustes fiscais que provocarão uma queda de PIB que será tanto maior quanto mais for postergada a reestruturação da sua dívida pública.

Dentro da União Europeia, a Grécia é um país pequeno, mas não é o único enfrentando problemas graves. A Espanha tem uma tradição de austeridade fiscal, e em 2007 sua dívida pública era pequena, inferior a 40% do PIB. Por isso, poderia usar mais intensamente os estímulos fiscais, e o fez elevando os gastos públicos em 7 pontos porcentuais do seu PIB, com uma queda praticamente igual da arrecadação tributária. Essa enorme ampliação do déficit público permitiu conter temporariamente a queda do PIB, mas, tanto quanto a Grécia, quedas maiores do PIB ocorrerão nos próximos trimestres. A Espanha também teve uma bolha imobiliária que estourou, e a baixa mobilidade de mão de obra na Europa deixou-a, mesmo diante dessa queda contida do PIB, com um desemprego próximo de 20% da população economicamente ativa.

Os prejuízos dos bancos que financiam a compra de casas - as Cajas -, não poderão ser cobertos pelos compradores, que estão ganhando menos ou estão desempregados, e fatalmente elevarão ainda mais a dívida pública. A reação keynesiana à crise de 2008 permitiu que a Espanha minimizasse transitoriamente os efeitos sobre o PIB, mas não evitará uma queda maior da atividade econômica nos próximos trimestres.

Contágio. A crise europeia terá reflexos sobre o crescimento mundial, reduzindo-o. Mas em que grau a economia brasileira poderá ser afetada? Será que o contágio desta particular crise pode produzir uma desaceleração semelhante à ocorrida quando a crise de 2008 se propagou? Será que a economia brasileira sofrerá queda semelhante àquela? Ou será que mesmo diante de efeitos ainda que menores, o Banco Central do Brasil pode ser levado a rever sensivelmente a trajetória de elevação da taxa Selic, reproduzindo qualitativamente o mesmo comportamento ocorrido em 2008?

A contração da produção industrial em praticamente todos os países, em 2008, ocorreu pela combinação de uma contração global do crédito bancário, combinado com o fato de que o valor em dólares das exportações mundiais despencou. Como essa contração global de crédito foi transmitida para o Brasil? Primeiro, os bancos brasileiros dependiam parcialmente de funding externo, que desapareceu. Com isso os bancos pequenos e médios passaram a depender pesadamente de recursos captados no mercado interbancário, que era fornecido por bancos grandes, que se retraíram pelo aumento dos riscos. Terceiro, esses riscos cresceram com o episódio dos "derivativos alavancados". A bolha nos preços dos ativos conduziu estrangeiros a comprarem ativos brasileiros, o que levou à continua valorização do real. A crença na "hipótese de mercados eficientes" levava os investidores a acreditar que aquelas valorizações eram provenientes de "fundamentos", e não de "bolhas", e por isso julgaram que o real permanentemente se apreciaria.

Mas o mundo era diferente, e a depreciação cambial provocou prejuízos que colocaram aquelas empresas próximas da insolvência, o que elevou ainda mais a percepção de riscos, contraindo ainda mais a oferta de crédito. Essa contração, ao lado da queda das exportações, foi o canal através do qual ocorreu a queda da produção industrial no Brasil, jogando o país na recessão.

Se as previsões da taxa Libor se confirmarem, e as autoridades europeias tiverem sucesso em evitar uma segunda crise bancária, este canal de transmissão para o Brasil não atuará. Mas, ainda assim, o País deverá ser afetado pela aversão ao risco e seus efeitos sobre os preços internacionais de commodities, sobre os fluxos de capitais e sobre a taxa cambial. Todas as evidências, contudo, até aqui, indicam efeitos relativamente pequenos. Medidas de aversão ao risco, como o índice VIX, cresceram pouco relativamente ao ocorrido em 2008; da mesma forma, os spreads dos bônus de dívida soberana elevaram-se pouco relativamente a 2008, mesmo nos casos de países emergentes de pior desempenho macroeconômico, como são os casos de Argentina e de Venezuela. Mas ainda é cedo para cantar vitória, porque com a desaceleração europeia teremos uma segunda força acentuando a desaceleração da economia chinesa, que já reduziu a expansão de crédito à metade da taxa ocorrida em resposta à crise de 2008, visando evitar um superaquecimento. Essas forças, somadas à aversão ao risco, pioram um pouco as perspectivas sobre o comportamento dos preços de commodities.

Todas estas são forças que levarão a alguma desaceleração do crescimento brasileiro. Mas elas não são forças suficientemente importantes para aliviar sensivelmente a carga do ajuste imposta sobre a política monetária. O melhor dos mundos seria se as autoridades brasileiras percebessem que a idolatria à política fiscal expansionista deveria limitar-se apenas e tão somente aos períodos nos quais o País precisa desse instrumento para sair de uma recessão.

Como mostram as histórias dos países da periferia europeia, o abuso do instrumento fiscal traz consequências desagradáveis e custosas. No caso brasileiro, não chegaremos ao extremo de gerar dúvidas quanto à sustentabilidade do crescimento da dívida pública, mas estamos impondo carga maior sobre a política monetária. Cresce, com isso, a intervenção do governo na economia, e os juros mais altos provocarão um crowding-out adicional sobre gastos privados de consumo e de investimentos.