Título: Dez anos depois, genoma ainda é um labirinto
Autor: Gonçalves, Alexandre
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/06/2010, Vida, p. A23

Sequenciamento dos genes do ser humano é um marco da ciência, mas, após uma década, cientistas ainda têm muito a decifrar

Antes do sequenciamento do genoma humano, acreditava-se que o código decifrado da vida abriria as portas para a cura de inúmeras doenças. Não demorou muito para se descobrir, do outro lado, um labirinto de novos enigmas e poucas respostas.

As surpresas começaram com o número de genes que codificam proteínas - substâncias responsáveis pelo trabalho pesado nas células, como coordenar reações químicas e atuar como elemento estrutural.

Um raciocínio simplista propunha: se uma minhoca tem 19 mil genes, o patrimônio humano deveria beirar os 100 mil. Caso contrário, seria impossível explicar tanta complexidade. Certo?

Errado. O ser humano tem apenas 21 mil genes que codificam proteínas, número comparável ao repertório de camundongos e chimpanzés. Sem dúvida, o segredo da espécie humana não está no número de letras químicas que guardam a receita da vida, mas no modo como essas letras são lidas.

A evolução proporcionou mecanismos sofisticados para que a mesma região do DNA seja traduzida de diversas formas, com finalidades diferentes. Por enquanto, os pesquisadores ainda tateiam os mecanismos que tornam os genes tão versáteis. Engatinhamos no proteoma - a descrição das proteínas que os genes são capazes de fabricar.

Além disso, apenas 1,5% do genoma codifica proteínas. O resto chegou a ser rotulado como "DNA lixo". Em tese, não guardaria dados relevantes. Hoje, os cientistas sabem que o "lixo" - reabilitado com o nome de DNA não codificante - exerce um papel fundamental e, até agora, pouco compreendido no metabolismo celular. Surge assim outro labirinto de perguntas.

"É como escalar uma montanha", compara Sergio Verjovski Almeida, do Instituto de Química da USP. "Muitas vezes, quando você chega ao topo, avista outro cume mais alto para subir." Almeida pesquisa o genoma do câncer. Estuda, por exemplo, o papel do DNA não codificante em tumores.

A história da proteína p53, descoberta em 1979, mostra como a complexidade não conhece limites. De início, ela foi vista apenas como um supressor tumoral. Na última década, pesquisadores descobriram que a p53 se liga a regiões do genoma para controlar a transcrição de substâncias que coordenam o crescimento celular. Hoje sabemos que ela interfere em milhares de posições do DNA. Também interage com inúmeras proteínas que alteram seu comportamento original.

O gene responsável pela produção da p53 pode ser lido de nove formas, fabricando versões da proteína com funções tão diferentes como garantir a fertilidade ou promover o desenvolvimento do embrião. A cada semana, surgem artigos sobre novas facetas da p53. E ela constitui apenas uma peça de um quebra-cabeça com milhares.

Para entender sistemas tão complexos, biólogos buscaram ajuda na computação. Segundo um levantamento realizado pela revista científica Nature, quando o genoma humano foi anunciado, em 2000, havia 8 bilhões de letras químicas armazenadas nos três principais bancos de dados do mundo. Hoje, as mesmas instituições - nos EUA, Japão e Europa - guardam 270 bilhões de pares de bases de DNA.

Não é fácil processar tanta informação. Mesmo assim, o maior desafio ainda é extrair conhecimento dos dados e terapias dos conhecimentos. Em 1989, Francis Collins, que mais tarde coordenaria o Projeto Genoma Humano, identificou o gene alvo das mutações que causam a fibrose cística, doença grave que compromete vários órgãos e leva à morte prematura.

Em um artigo de março deste ano, Collins afirma que a descoberta custou US$ 50 milhões e vários anos de trabalho. Atualmente, bastariam poucos dias, alguns milhares de dólares e um estudante de pós-graduação competente. Vinte anos de pesquisa baratearam o sequenciamento, mas não trouxeram a cura da fibrose cística.

Também existem boas notícias. Pelo menos quatro medicamentos para câncer nasceram de pesquisas relacionadas ao Projeto Genoma. Iniciativas como o Atlas Genômico do Câncer, que reúne 20 mil projetos para mapear mutações relacionadas a tumores e apontou candidatos interessantes para terapias.

O geneticista José Pedro Fonseca, que passou um ano no Instituto J. Craig Venter, nos Estados Unidos, recorda o princípio conhecido como "primeira lei da tecnologia" para descrever o impacto do genoma humano na história. "Como em outras áreas, os resultados foram superestimados no curto prazo, mas se mostrarão subestimados no longo."