Título: Uma nova pílula revolucionária
Autor: Kristof, Nicholas D.
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/08/2010, Internacional, p. A16

Medicamento para prevenir úlceras pode ser usado para "aborto médico" com menos riscos para as mulheres

Será que o impasse global sobre o aborto, que dura décadas, poderá ser encerrado graças a pequenas pílulas brancas que custam menos de US$ 1 cada uma? Talvez sim, porque essas pílulas já começaram a revolucionar o aborto em todo o mundo, principalmente nos países pobres, permitindo salvar a vida de dezenas de milhares de mulheres a cada ano.

Cerca de 80% dos abortos ocorre nos países em desenvolvimento, onde a falta de uma esterilização adequada torna o procedimento muito perigoso. Segundo a Organização Mundial da Saúde, morrem anualmente cerca de 70 mil mulheres em consequência de complicações.

Pesquisadores, porém, estão encontrando uma alternativa segura e barata que dificilmente os governos poderão restringir - o misoprostol, um medicamento originalmente prescrito para prevenir úlceras do estômago.

"Estou me sentindo como as pessoas devem ter se sentido quando descobriram a bomba nuclear", afirmou a doutora Beverly Winikoff, presidente da Gynuity Health Projects, uma instituição de pesquisa sem fins lucrativos para a saúde da reprodução. A estratégia farmacológica é chamada "aborto médico". Nos EUA e na Europa, ela consiste basicamente na ingestão de duas pílulas "M". A primeira é o mifepristone, anteriormente conhecido como RU-486, e a segunda, um dia ou dois mais tarde, o misoprostol.

A utilização destes produtos combinados produz o aborto em mais de 95% dos casos, no início da gestação. Mas o mifepristone é difícil de obter em grande parte do mundo, porque é usado somente para induzir abortos. No entanto, o misoprostol é de amplo acesso e não poderá ser facilmente proibido porque é usado também contra úlceras. Segundo os pesquisadores, o uso do misoprostol sozinho fará sua eficácia cair para 80 a 85%.

"O aborto médico representa uma revolução para a saúde reprodutiva das mulheres", disse Dana Hovig, da Marie Stopes International, um grupo de ajuda que oferece serviços de saúde da reprodução em 43 países em todo o mundo. "Salva a vida de mulheres e tem um enorme potencial para permitir a realização de abortos seguros a um custo mínimo."

O aborto médico por este processo não se distingue do espontâneo. Isto é importante para as mulheres nos países nos quais correm o risco de ser presas se procurarem a ajuda de um hospital depois de um aborto mal feito. Um risco mais grave é a suspeita de que o misoprostol cause malformações, talvez em 1% dos nascimentos, mas somente se falhar e a gravidez continuar até o fim.

Não se sabe ao certo até que ponto da gravidez o aborto médico é viável. De certa forma, parece funcionar "desde o primeiro dia da gravidez até o final", afirmou a dra. Beverly, mas a eficácia e a segurança dos abortos praticados em estágios mais avançados ainda precisam ser investigadas.

O Brasil e alguns outros países tentaram restringir a venda do misoprostol por sua utilização como abortivo. Enquanto a novidade espalha-se entre as mulheres de todo o mundo, é difícil saber se os políticos conseguirão frear esta revolução ginecológica. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

É COLUNISTA E GANHADOR DE

DOIS PRÊMIOS PULITZER