Título: Um ano sob censura
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 31/07/2010, Notas e informações, p. A3

Hoje faz um ano que este jornal está proibido de publicar notícias baseadas nas apurações da Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, sobre os possíveis ilícitos praticados pelo empresário Fernando Sarney, o filho do presidente do Senado que controla os negócios do clã maranhense. E acabou de fazer meio ano que se espera da Justiça um pronunciamento sobre o mérito de uma questão que envolve nada menos que o princípio constitucional da liberdade de imprensa e do direito à informação no País.

A censura prévia, em caráter liminar, foi imposta em 31 de julho de 2009, a pedido do investigado, pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF) Dácio Vieira. Trata-se de um ex-consultor do Senado, relacionado com a família Sarney e o notório Agaciel Maia, o apadrinhado do patriarca que dirigiu a Casa até ser colhido pelo escândalo dos atos secretos. Em 18 de dezembro, Fernando Sarney desistiu da ação, o que levaria ao seu arquivamento. O Estado não concordou. Havia dois fundamentos para a recusa.

Em primeiro lugar, a desistência não evitaria que o primogênito do senador José Sarney entrasse com outra ação rigorosamente idêntica à anterior se o jornal publicasse novas matérias sobre a investigação que desembocou no indiciamento do empresário por lavagem de dinheiro, tráfico de influência, formação de quadrilha e falsidade ideológica. Em segundo lugar ? e mais importante ?, o arquivamento impediria que a Justiça se manifestasse de uma vez por todas sobre o que o jornal, os mais reputados juristas do País e entidades internacionais consideram uma violação da Lei Maior brasileira.

A indefinição judicial diante de um assunto de tamanha ressonância é mais um motivo de estranheza no desenrolar do caso. Ao se evidenciarem os laços entre Dácio Vieira e os Sarneys, o advogado do Estado, Manuel Alceu Affonso Ferreira, pediu, com base no Código de Processo Civil, que ele se abstivesse de tomar decisões no processo, o que o desembargador se recusou a fazer, dizendo-se competente para julgá-lo. O jornal insistiu ? e o resultado foi uma decisão esdrúxula do Conselho Especial do TJ-DF, em setembro do ano passado.

Afinal, embora tivesse declarado suspeito o desembargador (por 10 votos a 2) e designasse um novo relator para a ação, a Corte manteve a mordaça imposta por Vieira. O absurdo salta aos olhos de qualquer um: como pode permanecer válido o ato de um juiz cuja imparcialidade na matéria não foi reconhecida pelos próprios pares? Houve mais. O TJ-DF, alegando que as decisões judiciais sobre a Operação Boi Barrica foram tomadas no Maranhão, decidiu transferir o processo contra este jornal para a Justiça Federal de primeira instância no Estado. Mas o juiz de primeira instância em Brasília, por sua vez, decidiu esperar o julgamento dos recursos impetrados pelo jornal nos tribunais superiores. Enquanto nada se decide, a liberdade de imprensa segue sendo violada a cada dia.

Não bastasse isso, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao apreciar um pedido de pronta suspensão da censura ao Estado, apresentado em novembro, prendeu-se a uma tecnicalidade processual para não entrar no mérito da proibição. Para 6 dos 9 ministros que votaram pelo arquivamento do recurso, uma preliminar formal contou mais do que a oportunidade histórica de afirmar a incolumidade do primado da liberdade de expressão ? cláusula pétrea da Constituição de 1988. O Estado havia argumentado que o ato do TJ-DF se baseara na Lei de Imprensa da ditadura militar que, nesse meio tempo, o próprio STF viria a extinguir.

O acórdão dessa decisão disse tudo que precisava ser dito sobre a importância das liberdades públicas, das garantias fundamentais e da certeza jurídica para a ordem democrática e o Estado de Direito. É o que a censura prévia desfigura. Nas palavras do ministro Carlos Ayres Britto, vice-presidente do STF, "não há no Brasil norma ou lei que chancele poder de censura à magistratura". Contrariamente à visão de que a defesa da honra e da privacidade impõe limites ao direito de imprensa, Britto sustenta, singelamente, que "não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso".