Título: Leis inadequadas e silêncio de vítimas obstruem caça a aliciadores de ilegais
Autor: Portela, Marcelo
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/09/2010, Internacional, p. A16

Apesar de o esquema ser do conhecimento de boa parte da população das cidades do leste de Minas Gerais, a polícia admite ter grande dificuldade para capturar e enquadrar como criminosos agenciadores locais da rede de emigração clandestina que causou a morte de pelo menos dois brasileiros há duas semanas no México, perto da fronteira com os Estados Unidos.

Protegido principalmente pelo silêncio de quem os contrata - seja por medo de represálias ou pelo desejo de usar o "serviço" -, o esquema enriquece até mesmo prefeitos e conhecidos empresários dos municípios, que atuam como "cônsules" - nome pelo qual os agenciadores das viagens clandestinas são conhecidos. O modo de operação da rede está envolvido em uma lista de crimes como assassinatos, sequestros, extorsões, corrupção e falsificação de documentos, entre outros. E lucra alto em cima dos que pagam caro pelo sonho de "fazer a América".

O delegado Cristiano Campidelli, chefe da unidade da Polícia Federal em Governador Valadares, diz que há cerca de 100 "cônsules" sob investigação em aproximadamente 50 inquéritos para apurar o esquema de tráfico de pessoas. Mas o delegado ressalta que, além do silêncio dos candidatos a emigrar, que pagam até US$ 15 mil (cerca de R$ 25 mil) para tentar a travessia, a polícia esbarra na dificuldade de tipificar os crimes cometidos pela rede.

"Não existe um tipo penal específico para quem organiza essas viagens. Isso só ocorre no caso de envio de pessoas para a prostituição ou mediante fraude para trabalho. Normalmente, não é o que ocorre", afirmou. "Conseguimos indiciar alguns envolvidos por falsificação de documentos ou falsidade ideológica e temos condenações. Mas são crimes com penas leves e as pessoas ficam poucos dias na prisão", acrescentou.

Em alguns poucos casos a polícia tem conseguido comprovar outros crimes do esquema. No fim de julho, a PF prendeu em Serra (ES), por ordem da Justiça, o "coiote" - pessoa que leva os emigrantes clandestinos para os EUA, normalmente pela fronteira com o México - João Coelho, de 40 anos, conhecido também como "João Peroba". Ele era monitorado desde 2008, quando foi extraditado dos EUA, por suspeita de sequestro e tortura das pessoas que levava para a travessia com o objetivo de extorquir dinheiro de parentes no Brasil.

Sequestro. "João Peroba" é apontado como o autor, entre outros, do sequestro de Renato Alcântara Orsine, de 23 anos, e Ernani Vieira Ramos, de 26, que saíram de Ladainha (MG) e foram mantidos em cativeiro no México. Eles foram libertados após o pagamento de US$ 20 mil de resgate, uma semana antes de o acusado ser preso. Mesmo depois do apuro, segundo a PF, a dupla ainda entrou ilegalmente nos EUA, mas foi presa pela polícia americana e deve ser deportada. "João Peroba" está preso preventivamente em Contagem, perto de Belo Horizonte, onde aguarda julgamento.

O esquema pode ser ainda mais cruel, segundo constatou a Polícia Civil mineira, em 2007, quando o então delegado Francisco Lemos - hoje, vereador em Coronel Fabriciano - começou a investigar um assassinato na vizinha Timóteo. Ele diz que as investigações mostraram que a execução do ex-presidiário Oliveira de Paula estava ligada a outro assassinato ocorrido na região e ambos eram crimes de pistolagem.

Ao chegar até o pistoleiro acusado das mortes, Adriano Rodrigues Miranda, o "Pitbull", o assassino confesso disse que havia cometido os crimes a mando de João Correia da Silveira, o "João Caboclo", na época prefeito de Tarumirim, na região de Valadares. "Pitbull" foi preso após ter a própria morte encomendada e ser baleado pelo cabo da PM Marcos Almeida Araújo, capturado ao trocar tiros com policiais civis que passavam pelo local na hora do atentado.

Depois de preso, Miranda revelou à polícia que ele e outros pistoleiros eram contratados por "João Caboclo" para cobrar dívidas de parentes de pessoas que assinavam notas promissórias para fazer a travessia clandestina para os EUA. O esquema envolvia, segundo a polícia, o ex-prefeito, uma empresa de Miami (EUA) e empresários brasileiros, "cada um com sua função", de acordo com Lemos.

"Se a família não pagasse a dívida da viagem, "Caboclo" mandava matar algum parente para servir de exemplo", disse o ex-delegado. "Espontaneamente, "Pitbull" disse que só ele tinha matado 16 pessoas nesse esquema", acrescentou Lemos.

O ex-policial, segundo o pistoleiro, também seria uma das vítimas, pois teve a morte encomendada juntamente com a do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Durval Ângelo (PT) - que denunciou o chamado "Sindicato do Crime". Mesmo após confessar as mortes e ter recebido dinheiro para executar o então delegado e o deputado, Miranda foi solto por ordem da Justiça.

"João Cabloco", por sua vez, já foi denunciado pelo Ministério Público, teve o julgamento marcado três vezes, mas recursos da defesa impediram a realização do júri popular, que ainda não teve a data remarcada. O Estado tentou falar com o ex-prefeito, mas ele não foi localizado.

A atual crise de violência no México agrava ainda mais a situação dos emigrantes ilegais. As rotas de travessia hoje são dominadas por grupos de narcotráfico violentos, aparentemente vinculados com os "cônsules" locais.

Por enquanto, a Polícia Federal ainda não divulgou nenhuma pista sobre o agenciador contratado pelos amigos de infância Juliard Aires Fernandes, de 20 anos, e Hermínio Cardoso dos Santos, de 24 - que deixaram a casa de suas famílias, nas zonas rurais de Santa Efigênia de Minas e Sardoá, vizinhas a Governador Valadares, para aventurarem-se a tentar entrar clandestinamente nos EUA.

Fernandes já teve o corpo identificado entre os 72 migrantes latino-americanos executados por traficantes do cartel mexicano Los Zetas, no Estado de Tamaulipas. Santos teve os documentos encontrados no local da chacina, mas não teve o corpo identificado oficialmente. Seus parentes rejeitam dizer quem agenciou a trágica viagem.

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