Título: Ainda sitiada, capital luta para retomar a rotina
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/10/2010, Internacinal, p. A33

De aulas a casamentos são cancelados por causa de crise política; polícia volta às ruas, mas estado de exceção continua em vigência

Chorando em silêncio na Rua García Moreno, no centro histórico de Quito, Emília Merizalde, de 28 anos, olhava na direção da Igreja da Companhia de Jesus. Ali, ontem, ela se casaria com seu namorado, Daniel Borzallo. Mas o noivo, pelo celular, explicava a parentes que a cerimônia religiosa estava cancelada, pois o padre desistira de celebrar o casamento na igreja, localizada quase ao lado do Palácio Presidencial de Carandolet.

Questionados pelo Estado sobre a razão do problema, o jovem casal explicou que 90% dos convidados viriam do exterior para a celebração. Muitos não haviam conseguido chegar ao país por causa do fechamento de aeroportos e das fronteiras, na quinta-feira.

"Planejei esse casamento desde janeiro... E não vou casar porque a igreja está ao lado do palácio presidencial", dizia Emilia, angustiada.

Mas, ao longo da entrevista, Emília recuperou o ânimo e afirmou com entusiasmo que mesmo sem poder casar partiria em lua-de-mel para o Caribe na segunda-feira. "Casaremos depois, já que as disputas políticas de meu país me impedem de fazê-lo agora. Mas eu vou para minha lua de mel", disse abrindo um sorriso.

A duas quadras dali, na esquina das Ruas Chile e Venezuela, o artesão Manuel Jara segurava um cartaz com dizeres contra os "golpistas". Jara disse que faria vigília na área da praça para proteger seu presidente, "que atualmente incomoda a oligarquia porque quer uma revolução social que afeta os interesses da burguesia".

Volta à normalidade. O país permanecia ontem sob o estado de exceção, previsto no artigo 156 da Constituição equatoriana. Com o decreto, o governo Correa suspendeu o direito de reunião, o fechamento de aeroportos e impôs o controle sobre a informação. Apesar da vigência da ordem de exceção, a vida voltava, pouco a pouco, à normalidade no país.

As estradas em todo o Equador foram reabertas, bem como as fronteiras. Os aeroportos voltaram a funcionar a partir da madrugada.

Com a volta da polícia às ruas, ampliando a vigilância, acabou a onda de saques ocorrida na quinta-feira. Durante do dia da crise, a polícia, em estado de rebelião, deixou o policiamento de lado, facilitando o trabalho dos saqueadores de comércios.

Os canais de TV voltaram ao funcionamento costumeiro, sem a intervenção da rede nacional. Ontem, os equatorianos voltavam a assistir suas telenovelas e programas de fofocas. As notícias da rebelião da véspera eram assunto secundário.

"Aqui no Equador é assim, é América Latina ao quadrado", disse ao Estado, com ironia, Carolina Baños, estudante de sociologia de 19 anos.

Em seguida, ela completa: "Toda hora tem golpe, todo fim de semana há políticos fazendo declarações bombásticas. E sempre há rumores de conspirações. Eu, desde que tinha 7 anos, já vi a posse de oito presidentes. Oito! E, no entanto, o país continua existindo."