Título: Estratégia fiscal
Autor: Khair, Amir
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/09/2010, Economia, p. B6
Herança: o novo governo parte de um patamar fiscal superior em relação ao herdado do atual. Os dois principais indicadores são o resultado fiscal (receitas menos despesas, inclusive juros) e dívida líquida do setor público (DLSP). Em 2002, o déficit fiscal foi de 9,6% do PIB e neste ano deve se aproximar de 2%. A DLSP ao final de 2002 estava em 52,2% e neste ano deve fechar em 40%.
Quatro fatos merecem destaque na comparação das despesas atuais do governo federal com as ocorridas no último ano de FHC: a) 90% da expansão das despesas foram devidas a políticas de transferências de renda (salário mínimo, Bolsa-Família, seguro-desemprego e benefícios assistenciais); b) a despesa de pessoal passou de 4,8% do PIB para 4,7%; c) o chamado "déficit" da Previdência Social estacionou em 1,2% do PIB e; d) os investimentos e inversões financeiras triplicaram.
É fundamental avaliar a evolução das despesas e seus efeitos sobre as receitas. As transferências de renda estimularam o crescimento econômico, ocasionando maior arrecadação e melhoraram os índices sociais e fiscais.
Fatores condicionantes: Para os próximos anos são possíveis crescimentos do PIB superiores a 5% e queda da taxa real de juros. Ambos decisivos para as finanças públicas. O crescimento baliza a receita pública, que cresce acima do PIB puxada pelo faturamento e lucro das empresas, massa salarial, redução da inadimplência e sonegação. A taxa de juros é que tem maior peso para alterar a despesa pública, como podemos ver a seguir.
Ajuste fiscal: Nos últimos anos, segundo dados da Secretaria do Tesouro Nacional, a despesa, exclusive juros, do setor público foi de 35% do PIB, sendo 57% de responsabilidade dos Estados e Municípios. Dos 43% de competência do governo federal, apenas 20% são passíveis de redução, por amarrações legais. Admitindo que se consiga reduzir 20% delas via gestão, se teria uma economia na despesa pública de 0,6% do PIB (35% x 43% x 20% x 20%).
Por outro lado, a despesa com juros é de 5,4% do PIB, pois temos a maior taxa de juros do mundo, o triplo (!) do segundo colocado. Se o Brasil tivesse uma taxa de juros a nível internacional, essa despesa seria de 1,8% do PIB, permitindo uma economia de 3,6% do PIB! Assim, o ajuste fiscal poderá alcançar 4,2% do PIB, sendo 0,6% nas despesas e 3,6% nos juros. A racionalização é mais demorada e difícil, mas terá de ser feita. Quanto aos juros, deve-se enfrentar a argumentação de que a Selic é alta por ser necessário sustar a elevação do consumo, que ocasiona a inflação. Vale discutir isso.
Combate à inflação: Para controlar a inflação é necessário ter meta de inflação e a máxima eficácia para atingi-la. Uma alternativa é: a) definir uma meta para 12 meses à frente e não por ano; b) assumi-la como compromisso de governo e não do Banco Central (BC), pois cerca de 70% da evolução dos preços independe do BC. Exemplo: preços administrados, commodities, alimentos, produtos importados, combustíveis e preços de monopólios, como o minério de ferro e; c) usar arsenal completo no combate à inflação, com políticas monetárias, tributárias, tarifárias, creditícias, alíquotas de importação e controle de preços sobre empresas com poder de monopólio.
Além dessa limitação do BC, a Selic é ineficaz para alterar o consumo, e seu elevado nível gera rombos nas contas externas, como é visto a seguir.
Descolamento: O nível elevado da Selic reduz a oferta e não atua na demanda, que é comandada pela massa salarial, nível de confiança do consumidor, oferta de crédito e taxa de juros ao consumidor, que se descolou da Selic desde que o governo passou a usar suas instituições financeiras para baixar as taxas de juros. Veja duas situações ocorridas.
1.ª) De dezembro de 2008 a agosto deste ano a Selic foi reduzida em 3 pontos porcentuais (p.p.), a taxa de juros para as empresas caiu 1,8 p.p. e para o consumidor 18 p.p. É isso mesmo, 18 p.p. Assim, as taxas de juros pagas pela empresas caíram apenas 60% da queda da Selic e as dos consumidores caíram 6 (!) vezes mais (18 dividido por 3).
2.ª) Neste ano, a Selic passou de 8,75% para 10,75%, subindo 2 p.p., com elevação de 2,6 p.p. para as empresas e redução (!) de 1,2 p.p. para os consumidores.
Se a Selic não serve para controlar a demanda, ela só está servindo para deteriorar as finanças públicas, elevando a dívida e os juros do governo federal, além de causar rombos nas contas externas do País.
Desperdício: Se a Selic continuar sendo 10,75%, vai causar uma elevação adicional nas despesas do governo federal de R$ 10 bilhões neste ano e de R$ 32 bilhões em 2011. Para evitar este desperdício, a ação imediata é conduzir a Selic ao nível internacional. Isso proporcionaria uma redução anual de despesas de R$ 130 bilhões, que equivale a 24% da despesa federal, ou 80% da despesa de pessoal, ou dez vezes o valor do Bolsa-Família.
Perspectivas: Crescimentos de 5%, com redução de 1 ponto porcentual da Selic por ano e superávit primário (receitas menos despesas, exclusive juros) de 1,8% do PIB, permitem obter ao final de 2014 equilíbrio fiscal e dívida líquida de 30% do PIB. Se o crescimento for de 4%, o superávit primário necessário é de 2,1% do PIB. Nos dois casos, as despesas com juros cairiam todo ano e em 2014 seriam de 1,8% do PIB, portanto, no nível internacional.
No entanto, três problemas ameaçam a questão fiscal: a emissão de títulos para uso do BNDES, a elevação das reservas internacionais e a política de controle do câmbio.
BNDES: As operações de empréstimos de R$ 180 bilhões ao BNDES elevaram a dívida bruta do governo federal e custo fiscal pela diferença entre a Selic e a TJLP. Foi necessário o primeiro empréstimo de R$ 100 bilhões em 2009, por causa da crise, mas é questionável o segundo de R$ 80 bilhões feito neste ano. De qualquer forma, as perdas ou ganhos dessas operações vão depender da evolução do diferencial das taxas de juros entre Selic e TJLP, dos lucros obtidos pelo BNDES e no adicional de tributos gerados a favor do governo, o que só poderá ser apurado no futuro.
Além disso, cabe discutir o uso desses recursos para: a) grandes grupos econômicos, que podem contratar empréstimos no exterior; b) estímulo à internacionalização de empresas brasileiras, se não existir restrição à desnacionalização, e c) fusões e aquisições, que reduzam competitividade e elevação posterior de preços, caso não existam condicionalidades que impeçam isso.
Reservas Internacionais: O Brasil atravessou a crise com reservas de US$ 203 bilhões. Atualmente, atingem US$ 270 bilhões, desnecessariamente, através de operações compromissadas do Banco Central, mediante emissão de títulos públicos, que atingiram ao final de julho 12% do PIB (!). Essas operações respondem pela maior parte da elevação da dívida bruta do País, têm custo fiscal maior do que os empréstimos ao BNDES por causa do diferencial de juros entre a TJLP e os títulos do Tesouro americano, mas não foram alvo de crítica como as dos empréstimos do Tesouro ao BNDES. Para atenuar as perdas fiscais dessas operações compromissadas, se deveria usar as reservas nos próximos anos para fechar as contas do balanço de pagamentos.
Câmbio: As contas externas estão deficitárias em parte por causa da valorização do real, que reduz exportações, facilita importações, viagens internacionais e remessa de lucros e dividendos ao exterior. A estratégia que tem adotado o governo para atenuar isso é comprar dólares pelo BC e agora pelo Fundo Soberano, elevando as reservas, que quanto maiores mais atraem dólares, frustrando a estratégia. Como parte ponderável da valorização se deve à elevada Selic, que atrai operações de arbitragem, a solução é a sua redução. Como o BC não fará isso, compete ao Ministério da Fazenda anular a ação do BC, elevando o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), e voltar a tributar com o Imposto de Renda o lucro dessas operações, eliminando/reduzindo as aplicações especulativas em ações e títulos públicos. Outra possibilidade é estabelecer um prazo de permanência das aplicações especulativas de estrangeiros em ações e títulos de renda fixa.
Resumindo: 1) Manter políticas de estímulo ao consumo para ampliar o mercado interno, o que garante nível adequado de crescimento econômico. 2) Estabelecer novo sistema de controle da inflação cuja responsabilidade passa a ser do governo. 3) Reduzir a Selic ao nível internacional para garantir de forma eficaz e rápida a maior parte do ajuste fiscal e racionalizar as despesas para completar o ajuste. 4) Tributar os investimentos estrangeiros especulativos, para reduzir a apreciação do real, o rombo nas contas externas e aumentar a arrecadação. 5) Parar com a emissão de títulos para empréstimos ao BNDES. 6) Usar as reservas para cobrir os déficits das contas externas.
Esses seis pontos poderão contribuir para o ajuste fiscal que o País terá de fazer para avançar em relação ao que foi feito até agora.